Meu querido irmão, amigo e pastor
Nestes dias pensei muito em você e no testemunho que nos dá durante toda uma vida. Só temos agradecer a Deus que ainda há pastores-profetas e poetas. Sua inspiração é permanente. Agradeço especialmente pelo carinho que tem mostrado aos teólogos e teólogas da libertação. Eu já vou aos 80 e sinto o peso dos anos. Mas com um bastão sigo caminhando por este mundo. O grito dos pobres e o grito da Mãe Terra clamam e precisamos ouvi-los como você sempre ouviu o grito dos oprimidos.
Vá tranquilo ao encontro do Senhor, pois a sua casa está preparada desde toda a eternidade no coração da Trindade.
Com meu carinho e especialmente minhas preces diante do Senhor
Leonardo Boff
Ao completar, no dia 16 de fevereiro de 2018, 90 anos queremos homenagear a Dom Pedro Casaldáliga, pastor, profeta e poeta com um texto que, a meu ver, constitui o fio condutor de toda a sua vida de cristão e bispo: a relação que estabeleceu entre a pobreza e a libertação. Viveu e testemunhou com riscos de vida tanto a pobreza como a libertação dos mais oprimidos que são os indígenas e os camponeses, expulsos pelo latifúndio em terras de São Félix do Araguaia.
A pobreza é um fato que sempre tem desafiado as práticas humanas e todo tipo de interpretação. O pobre concreto nos desafia tanto que a atitude para com ele acaba por definir nossa situação definitiva diante de Deus. Isso o atestam tanto o Livro dos Mortos do Egito quanto a tradição judaico-cristã que culmina no texto de Mateus 25.
Talvez o mérito maior do bispo Dom Pedro Casaldáliga foi ter tomado absolutamente a sério os desafios que os pobres do mundo inteiro, especialmente da América Latina, nos lançam e sua libertação.
Seguramente vivenciou o seguinte processo: antes de qualquer reflexão ou estratégia de ajuda, a primeira reação é de profunda humanidade: deixar-se comover e encher-se de compaixão. Como deixar de atender sua súplica nem entender a linguagem de suas mãos suplicantes? Quando a pobreza aparece como miséria, irrompe em todas as pessoas sensíveis como em Dom Pedro também o sentimento de indignação e de iracúndia sagradacomo se nota claramente em seus textos proféticos, especialmente, contra o sistema capitalista e imperial que produz continuamente pobreza e miséria.
O amor e a indignação estão na base das práticas que visam abolir ou minorar a pobreza. Só está efetivamente do lado do pobre quem, antes de tudo, o ama profundamente e não aceita sua situação desumana. E Dom Pedro testemunhou esse amor incondicional.
Mas somos também realistas como nos adverte o livro do Deuteronômio: “Nunca faltarão pobres na terra. Por isso te faço esta recomendação: abre, abre a mão a teu irmão, ao pobre e ao necessitado que estiver na tua terra”(15,11). Da Igreja das origens em Jerusalém se diz como louvor: “Não havia pobres entre eles”(At 4,34) porque colocavam tudo em comum.
Estes sentimentos de compaixão e de indignação fizeram que Dom Pedro deixasse a Espanha, fosse depois à África e, por fim, desembarcasse não simplesmente no Brasil, mas no interior do país, onde padecem camponeses e indígenas sob a voracidade do capital nacional e internacional.
1. Leituras do escândalo da pobreza
Em função de uma compreensão mais adequada da anti-realidade da pobreza convém fazer algumas aclarações. Elas nos ajudarão a qualificar nossa presença efetiva junto aos pobres.Três compreensões de pobre circulam ainda hoje no debate.
A primeira, tradicional, entende o pobre como aquele que não tem. Não tem meios de vida, não tem renda suficiente, não tem casa, numa palavra, não tem haveres. Sobrevive no sub-emprego e com baixos salários. Quem está no sistema imperante os considera como zeros econômicos, óleo queimado, sobrantes. A estratégia então é mobilizar quem tem para ajudar a quem não tem. Em nome disso se organizou, por séculos, vasta assistência. E uma política beneficente mas não participativa. Mantém os pobres dependentes. Não descobriu ainda seu potencial transformador.
A segunda, progressista, descobriu o potencial dos pobres e percebeu que este não é utilizado. Pela educação e pela profissionalização é qualificado e potenciado. Assim os pobres são inseridos no processo produtivo. Reforçam o sistema, se fazem consumidores, embora em menor escala e ajudam a perpetuar as relações sociais injustas que continuam produzindo pobres. Atribui-se ao Estado a principal tarefa de criar postos de trabalho para esses pobres sociais. A sociedade moderna, liberal e progressista incorporou esta visão.
A leitura tradicional vê o pobre mas não percebeu seu caráter coletivo. A progressista, descobriu-lhe o caráter coletivo mas não apreendeu seu caráter conflitivo. Analiticamente considerado, o pobre é resultado de mecanismos de exploração que o fazem empobrecido, gerando assim grave conflito social. Mostrar tais mecanismos foi e continua sendo o mérito histórico de Karl Marx. Previamente à integração do pobre no processo produtivo vigente, dever-se-ia fazer uma crítica do tipo de sociedade que sempre produz e reproduz pobres e excluídos.
A terceira posição é a libertadora. Ela afirma: os pobres têm sim potencialidades. Não apenas para engrossarem a força de trabalho e reforçarem o sistema, mas principalmente para o transformarem em sua mecânica e em sua lógica. Os pobres, conscientizados, organizados por eles mesmos e articulados com outros aliados, podem ser construtores de um outro tipo de sociedade. Podem não apenas projetar mas pôr em marcha a construção de uma democracia participativa, econômica e ecológico-social. A universalização e a plenitude desta democracia sem fim se chama socialismo. Esta perspectiva não é nem assistencialista nem progressista. Ela é verdadeiramente libertadora porque faz do oprimido o principal sujeito de sua libertação e o forjador de um projeto alternativo de sociedade.
A teologia da libertação assumiu esta leitura de pobre. Traduziu-a pela opção pelos pobres contra a pobreza e em favor da vida e da liberdade. Fazer-se pobre por amor a eles e em solidariedade para com suas lutas, significa um compromisso contra a pobreza material, econômica, política, cultural e religiosa. O oposto a esta pobreza não é a riqueza, mas a justiça e a equidade.
Esta última perspectiva foi e é testemunhada e praticada por Dom Pedro Casaldáliga em toda a sua atividade pastoral. Com risco de vida, apoiou os camponeses expulsos pelos grandes latifundiários. Junto com as Irmãzinhas de Jesus do Pe. Foucauld, colaborou no resgate biológico do Povo Tapirapé, ameaçado de extinção. Não há movimento social e popular que não tenha sido apoiado por este pastor de excepcional qualidade humana e espiritual.
2. A outra pobreza: a evangélica e essencial
Há ainda duas dimensões da pobreza que estão presentes na saga de Dom Pedro: a pobreza essencial e a pobreza evangélica.
A pobreza essencial resulta de nossa condição de criaturas. Ela possui, portanto, uma base ontológica, que independe de nossa vontade. Parte do fato de que não nos demos a existência. Existimos dependendo de um prato de comida, de um pouco de água e das condições ecológicas da Terra. Somos pobres neste sentido radical. A Terra não é nossa, nem a criamos. Somos hóspedes nela e passageiros de uma viagem que vai além dela. Mais ainda. Humanamente dependemos de pessoas que nos acolhem e que convivem conosco com os altos e baixos, próprios da condição humana. Somos todos interdependentes. Ninguém vive para si e em si. Estamos sempre enredados numa teia de relações que garantem nossa vida material, psicológica e espiritual. Por isso somos pobres e dependentes uns dos outros.
Acolher esta condition humaine nos torna humildes e humanos. A arrogância e a excessiva auto-afirmação não têm aqui lugar porque não possuem base que as sustenta. Esta situação nos convida a sermos generosos. Se recebemos o ser de outros, devemos também doá-lo aos demais. Esta dependência essencial nos torna também gratos a Deus, ao universo, à Terra e às pessoas que nos aceitam assim como somos. É a pobreza essencial. Esse tipo de pobreza tornou a Dom Pedro um bispo místico, agradecido por todas as coisas.
Existe ainda a pobreza evangélica, proclamada por Jesus como uma das bem aventuranças. Na versão de São Mateus se diz: ”bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus” (5,3). Este tipo de pobreza não está diretamente vinculada ao ter ou não ter. Mas a um modo de ser, a uma atitude que poderíamos traduzir por infância espiritual. Pobreza aqui é sinônimo de humildade, desprendimento, vazio interior, renúncia a toda vontade de poder e de auto-afirmação. Implica a capacidade de esvaziar-se para acolher Deus, implica também o reconhecimento da nadidade da criatura diante da riqueza do amor de Deus que se comunica gratuitamente. O oposto à esta pobreza é o orgulho, a fanfarronice, a inflação do eu e o fechamento diante dos outros e de Deus.
Esta pobreza significou a experiência espiritual do Jesus histórico. Ele não somente era pobre materialmente e assumiu a causa dos pobres, mas também se fez pobre em espírito, pois “aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo; apresentando-se como simples homem, humilhou-se, feito obediente até a morte, até a morte de cruz” (Flp 2,7-9). Esta pobreza é o caminho do evangelho, por isso se chama também de pobreza evangélica, sugerida por São Paulo: “tende os mesmos sentimentos que Cristo teve”( Flp 2,5).
O profeta Sofonias testemunha esta pobreza de espírito quando escreve: “Naquele dia, não serás confundida, filha de Sion, por causa de todos os pecados que cometeram contra mim, jactanciosos e arrogantes; não te orgulharás mais no meu santo monte. Deixarei subsistir no meio de ti um povo pobre, humilde e modesto que porá sua confiança no nome do Senhor”(2,11-12).
Esta pobreza evangélica e infância espiritual constituem uma das irradiações mais visíveis e convincentes da personalidade de Dom Pedro Casaldáliga. Ela aparece no seu modo pobre mas sempre limpo de se vestir, na sua linguagem inundada de humor mesmo quando se faz crítico contundente dos desvarios da globalização econômico-financeira e da prepotência neoliberal ou profeticamente denuncia as visões medíocres do governo central da Igreja face aos desafios dos condenados da Terra e das questões que concernem a toda a humanidade. Essa atitude de pobreza se manifesta exemplarmente quando nos encontros com cristãos das bases, geralmente pobres, se coloca no meio deles, escuta atentamente o que dizem, quando se senta aos pés de conferencistas, seja teólogos, sociólogos ou portadores de outro saber qualificado para escutá-los, anotar seus pensamentos e humildemente formular questões. Esta abertura revela um esvaziamento interior que o torna capaz de continuamente aprender e fazer suas sábias ponderações sobre os caminhos da Igreja, da América Latina, do Brasil e do mundo. Vemos esta atitude nos twitters que quase cada dia envia pela internet.
Quando os atuais tempos perturbados tiverem passado, quando as desconfianças e mesquinharias tiverem sido engolidas pela voragem do tempo, quando olharmos para trás e considerarmos os últimos decênios do século XX e os inícios do século XXI identificaremos uma estrela no céu de nossa fé, rutilante, após ter varado nuvens, suportado obscuridades e vencido tempestades: é a figura simples, pobre, humilde, espiritual e santa de um bispo que, estrangeiro, se fez compatriota, distante se fez próximo e próximo se fez irmão de todos, irmão universal: o nonagenário Dom Pedro Casaldáliga.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor que se deixou fascinar e inspirar por Dom Pedro Casaldáliga
(Os grifos são nossos.)
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