No contexto contemporâneo, em que muitos parecem justificar a não acolhida de imigrantes, de estrangeiros, de refugiados em nome da fé, de uma pretensa defesa dos valores cristãos, o cardeal Gianfranco Ravasi nos revela, com profundidade cultural e beleza ética e, sobretudo, com a inteligência da fé, que estão biblicamente enganados. Vale a pena ler:
Páscoa, uma festa de migrantes.
Artigo de Gianfranco Ravasi
Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura
(Publicado por Il sole 24 Ore/ Tradução: Moisés Sbardelotto)
“A história da religião judaico-cristã está intimamente entrelaçada com a da mobilidade humana, e a Páscoa é um atestado solene disso.”
A Bíblia: uma biblioteca escrita por migrantes. Assim, há alguns meses, um jesuíta alemão, Dominik Markl, intitulava um artigo seu na revista La Civiltà Cattolica (n. 4.018). E, com efeito, pode-se concordar com ele que esse texto sagrado – que permanece sempre como o “grande código” da nossa civilização ocidental – é “uma pequena biblioteca para levar na bagagem de mão, escrita por e para migrantes”.
Não é à toa que ela se abre com uma migração dramática, a de Adão, que abandona o Éden paradisíaco e se lança ao longo dos terrenos desolados de uma terra inóspita. Não é por nada que o evento gerador da história sagrada está naquela ordem divina dada a Abraão, “nosso pai na fé”, como diz São Paulo: “Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. (…) Abrão partiu conforme lhe dissera o Senhor” (Gênesis 12, 1.4; trad. Bíblia Pastoral). Não é por nada que o evento constitutivo de Israel como povo é o êxodo do Egito, uma fuga da escravidão e da miséria rumo a uma meta de liberdade e de bem-estar.
Por isso, quando Davi deve apresentar a si mesmo e seu povo a Deus, ele não hesita em cunhar esta definição:
“Todos nós, diante de ti, somos imigrantes e estrangeiros, como foram todos os nossos antepassados.” (1Crônicas 29, 15).
A tradição judaica posterior, no tratado rabínico relativo à Páscoa, reiterará: “Toda geração deve considerar a si mesma como tendo saído do Êxodo” (Pesaḥim 10, 5). Sob essa luz, não é surpreendente a normativa jurídica bíblica sobre o forasteiro residente em Israel:
“Quando um imigrante habitar com vocês no país, não o oprimam. O imigrante será para vocês um concidadão: você o amará como a si mesmo, porque vocês foram imigrantes na terra do Egito. (…) A mesma lei vale tanto para o nativo como para o imigrante que mora no meio de vocês.” (Levítico 19, 33-34; Êxodo 12, 49).
Sempre nessa linha, notando a “liberalidade” de solidariedade e de humanidadeque o mesmo ditado revela, deve-se citar outra norma presente no livro do Deuteronômio referente às rejeições:
“Quando um escravo fugir do seu patrão e se refugiar junto a você, não o devolva ao patrão. Ele permanecerá com você, entre os seus, no lugar que escolher, numa de suas cidades, onde lhe pareça melhor. Não o explore.” (Dt 23, 16-17).
Toda referência ao nosso presente é puramente casual, especialmente quando se faz referência às raízes judaico-cristãs da nossa sociedade e cultura…
Ora, se quiséssemos traçar o fio narrativo da Bíblia, descobriríamos que ele se desenvolve em uma trama de migrações. Só para dar alguns exemplos, Jacó, herói epônimo de Israel, vive como migrante na Síria e depois no Egito com seu filho José; Rute é uma viúva moabita que se casou com um emigrante judeu e que, depois, migra ela mesma para a pátria de seu marido. Daniel, Ester, Tobias, por exemplo, são judeus que vivem como estrangeiros na diáspora babilônica ou persa. Há também um refugiado criminoso que foge de uma prisão ideal, mas que é perseguido pela justiça divina, que, porém, reserva para ele sua jurisdição protetora: é a célebre história de Caim. Além disso, todo o Israel repetirá, com o exílio “ao longo dos rios da Babilônia” no século VI a.C., tanto a trágica experiência da antiga escravidão egípcia, quanto o “novo êxodo” com o retorno à pátria perdida. As páginas proféticas dos livros de Isaías e de Jeremias são dedicadas a essa história de lágrimas e de esperança.
Mas se quisermos chegar ao Novo Testamento, temos um Jesus que, durante sua missão pública, se desenraíza de Nazaré e é sempre um errante, a ponto de confessar que não tem uma toca como as raposas e um ninho como os pássaros e que não possui sequer uma pedra para usar como travesseiro.
A tarefa confiada aos apóstolos é clara: “Vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos” (Mateus 28, 19), criando uma Igreja em movimento. A meta dessa migração real e espiritual, atestada de modo impressionante pelas viagens de São Paulo, também tem uma dimensão transcendente e, portanto, metaespacial.
A esse respeito, é iluminador o apelo daquela imponente homilia neotestamentária que é a Carta aos Hebreus:
“Saiamos também do recinto sagrado (…) Pois nós não temos aqui a nossa pátria definitiva, mas buscamos a pátria futura.” (Hb 13, 13-14).
O último livro da Bíblia, o Apocalipse, dedicará suas páginas conclusivas, os capítulos 21-22, justamente a essa cidade, a Jerusalém nova que “desce do céu, de junto de Deus” (21, 2).
Quisemos recriar esse retrato sumário da história sagrada como experiência de contínua migração para oferecê-lo como marco para a solenidade que agora celebramos, a Páscoa. De fato, na sua matriz, ela era uma festa de migrantes. Era isso porque, como se sabe, ela foi embutida no relato da fuga de Israel do Egito.
Como se lê no capítulo 12 do Êxodo, trata-se de uma celebração noturna caracterizada pela imolação de um cordeiro que, depois, é assado ao fogo e comido com pães ázimos e ervas amargas, enquanto seu sangue é espalmado sobre os umbrais e a arquitrave das casas onde o banquete pascal era consumado.
Há, porém, um elemento ritual significativo:
“Vocês devem comê-lo assim: com cintos na cintura, sandálias nos pés e cajado na mão; vocês o comerão às pressas, porque é a páscoa do Senhor!” (Ex 12, 11).
É evidente que essa vestimenta é típica dos viandantes que devem seguir em frente rápidos e, portanto, cingem a vestimenta de modo a caminhar com mais agilidade.
Ora, nas entrelinhas desse rito, consegue-se entrever sua origem nômade: era, de fato, uma festa de transmigração que os pastores celebravam na lua cheia da primavera, antes de saírem em viagem para novas pastagens, com roupas de viandantes, com um sacrifício de augúrio (= prenúncio, presságio, profecia), com o ato apotropaico (= que tem o poder de afastar o mal) protetivo do sangue, com comidas casuais.
Para descrever esse ritual tipicamente ligado à transumância (= deslocamento sazonal para lugares melhores) de rebanhos e, portanto, à migração rumo à meta sonhada de um terreno rico em prados, gostaríamos de deixar a palavra a um grande especialista na matéria. Trata-se de um ex-ator da prestigiada Comédie Française, que depois se tornou dominicano e se tornou um dos maiores arqueólogos da Terra Santa. Seu nome era Roland de Vaux (1903-1971), e o texto que agora traduzimos está presente na Histoire ancienne d’Israël que ele publicou em Paris em 1971.
“A Páscoa é uma festa anual de nômades, de migrantes, de pastores, como é evidente nos seus ritos essenciais. Ela é celebrada fora de um santuário, sem sacerdotes; a vítima do rebanho, assada, é comida com pão sem fermento dos beduínos, com as ervas do deserto e com roupas típicas dos pastores errantes. Ela é celebrada à noite, na lua cheia que ilumina e que é a primeira lua da primavera, quando se parte para a transumância”.
E continua:
“Esse é um momento decisivo e arriscado por causa dos perigos da travessia da estepe, a incerteza sobre as pastagens, as dificuldades dos animais jovens, as ameaças das pessoas de outras tribos ou sedentárias. Esses perigos são personificados por um demônio, chamado de Destruidor (o ‘Exterminador’ de que se fala também em Êxodo 12, 23), e é para se proteger de seus golpes que se ungiam as tendas com o sangue sacrificial do cordeiro”.
Nesse ponto, De Vaux acrescenta uma nota que remonta ao passado, mas que também nos traz de volta a práxis que vemos se repetirem nos migrantes que residem entre nós.
“Esse sacrifício pré-israelita pascal tem relações estreitas com a dos árabes pré-islâmicos, reelaborado depois no rastro da Bíblia também pelo Islã, ou seja, com o sacrifício do mês de Radjab, a primavera, quando as vítimas são imoladas e consumidas para assegurar a preservação e a fertilidade do rebanho.”
Naturalmente, na Bíblia, ocorre uma reinterpretação radical do rito nômade. De festa sazonal e, portanto, naturalista e reiterada em datas fixas, a Páscoa bíblica se transforma em solenidade histórica, ligada ao evento de libertação, isto é, a um ato não pontuado pela natureza, mas confiado a um Deus salvador que se autoapresenta como aquele que “faz justiça ao órfão e à viúva e ama o imigrante, dando-lhe pão e roupa” e que se dirige assim aos fiéis: “Portanto, amem o imigrante, porque vocês foram imigrantes no Egito” (Dt 10, 18-19).
Quem critica a acolhida do imigrante com base em uma hipotética defesa dos valores cristãos, portanto, é explicitamente desmentido pelo texto capital da fé e da cultura cristã que pode ser descrito, com razão, justamente como “uma biblioteca escrita por migrantes”, que narram suas emigrações repletas de fadigas e sofrimentos, mas também de esperanças e expectativas. A história da religião judaico-cristã, então, está intimamente entrelaçada com a da mobilidade humana, e a Páscoa é um atestado solene disso.
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