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O que é Evangelizar?

O que Santo Agostinho refletiu sobre o tempo, pode igualmente ser afirmado sobre evangelização. A nossa proximidade com o tempo e a percepção visível de seus múltiplos efeitos cria em nós a ilusão de que se trata de algo óbvio e simples de compreender. Mas quando nos perguntamos, de fato, o que é o tempo e nos propomos responder, ficamos assustados com a complexidade em defini-lo, de forma cabal, em um conceito.

A Igreja, bem como cada comunidade, movimento, pastoral ou cristão em sua reflexão teológico-pastoral, terá que sistematicamente dizer e avaliar o que é evangelizar tendo presente as provocações do próprio Evangelho e do contexto contemporâneo do anúncio-testemunho. Veja, a seguir, o que nos legou a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiadi, do papa Paulo VI, dez anos após o Concílio Vaticano II e logo após o marcante Sínodo de 1974 que tratou de refletir sobre o tema “A Evangelização no mundo de hoje” e como tal concepção de evangelização está presente no magistério do papa Francisco:

 

O QUE É EVANGELIZAR?

(EN 17-24)

 

Complexidade da ação evangelizadora

17. Na ação evangelizadora da Igreja há certamente elementos e aspectos que se devem lembrar. Alguns deles são de tal maneira importantes que se verifica a tendência para os identificar simplesmente com a evangelização. Pode-se assim definir a evangelização em termos de anúncio de Cristo àqueles que o desconhecem, de pregação, de catequese, de batismo e de outros sacramentos que hão de ser conferidos.

Nenhuma definição parcial e fragmentária, porém, chegará a dar a razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a mutilar. É impossível captá-la se não se procurar abranger com uma visão de conjunto todos os seus elementos essenciais.

Tais elementos, acentuados com insistência no decorrer do mencionado Sínodo, são ainda agora aprofundados muitas vezes, sob a influência do trabalho sinodal. E nós regozijamo-nos pelo fato de eles se situarem, no fundo, na linha daqueles que o Concílio Ecumênico Vaticano II nos proporcionou, sobretudo nas Constituições Lumen Gentium eGaudium et Spes e no Decreto Ad Gentes.

Este número deixa explícita a dificuldade de reduzir a ação evangelizadora, “realidade rica, complexa e dinâmica”, a mero “anúncio de Cristo” a quem o desconhece. Urge buscar uma visão de conjunto capaz de abranger os diversos aspectos implicados na ação evangelizadora que dá continuidade ao que está encarnado na vida de Jesus por ensinamentos e ações.

Renovação da humanidade

18. Evangelizar, para a Igreja, é levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo seu influxo transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade: “Eis que faço de novo todas as coisas”. (46) No entanto não haverá humanidade nova, se não houver em primeiro lugar homens novos, pela novidade do batismo (47) e da vida segundo o Evangelho.(48) A finalidade da evangelização, portanto, é precisamente esta mudança interior; e se fosse necessário traduzir isso em breves termos, o mais exato seria dizer que a Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da mensagem que proclama, (49) ela procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam, e a vida e o meio concreto que lhes são próprios.

Este número mostra que o influxo da Boa Nova anunciada-testemunhada, qual fermento na massa,  transforma por dentro as pessoas e, consequentemente, ao provocar mudança interior, converte a consciência pessoal e coletiva, o jeito de agir e de viver, fazendo emergir uma humanidade nova. Este aspecto revela o qual superficial tem conseguido a ação evangelizadora na Igreja em nosso continente e diante dos desafios e urgências que emergem de nossas realidades sociais onde a Igreja está presente. Além disso, suscita o necessário discernimento dos cristãos em relação aos métodos utilizados na evangelização, em que estamos acertando e em que precisamos mudar para que o fermento do Evangelho penetre na cultura e na vida das pessoas para transformar a sociedade.

Estratos da humanidade

19. Estratos da humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação.

Com mais clareza ainda, fica claro neste número que evangelizar implica atingir e modificar pela força transformadora do Evangelho anunciado-testemunhado os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade.

Evangelização das culturas

20. Poder-se-ia exprimir tudo isto dizendo: importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes termos têm na Constituição Gaudium et Spes, (50) a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus.

O Evangelho, e consequentemente a evangelização, não se identificam por certo com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas. E no entanto, o reino que o Evangelho anuncia é vivido por homens profundamente ligados a uma determinada cultura, e a edificação do reino não pode deixar de servir-se de elementos da civilização e das culturas humanas. O Evangelho e a evangelização independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas.

A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a dar-se se a Boa Nova não for proclamada.

Evangelizar tem relação umbilical com a cultura, pois, o reino de Deus somente pode ser edificado e vivido por pessoas profundamente ligadas a uma determinada cultura. E denuncia que, apesar de não se identificarem, a ruptura ou o divórcio entre Evangelho e cultura é danoso para a ação evangelizadora.

Importância primordial do testemunho da vida

21. E esta Boa Nova há de ser proclamada, antes de tudo, pelo testemunho. Suponhamos um cristão ou punhado de cristãos que, no seio da comunidade humana em que vivem, manifestam a sua capacidade de compreensão e de acolhimento, a suacomunhão de vida e de destino com os demais, a sua solidariedade nos esforços de todos para tudo aquilo que é nobre e bom. Assim, eles irradiam, de um modo absolutamente simples e espontâneo, a sua fé em valores que estão para além dos valores correntes, e a sua esperança em qualquer coisa que se não vê e que não se seria capaz sequer de imaginar. Por força deste testemunho sem palavras, estes cristãos fazem aflorar no coração daqueles que os vêem viver, perguntas indeclináveis: Por que é que eles são assim? Por que é que eles vivem daquela maneira? O que é, ou quem é, que os inspira? Por que é que eles estão conosco?

Pois bem: um semelhante testemunho constitui já proclamação silenciosa, mas muito valiosa e eficaz da Boa Nova. Nisso há já um gesto inicial de evangelização. Daí as perguntas que talvez sejam as primeiras que se põem muitos não-cristãos, quer se trate de pessoas às quais Cristo nunca tinha sido anunciado, ou de batizados não praticantes, ou de pessoas que vivem em cristandades mas segundo princípios que não são nada cristãos. Quer se trate, enfim, de pessoas em atitudes de procurar, não sem sofrimento, alguma coisa ou Alguém que elas adivinham, sem conseguir dar-lhe o verdadeiro nome. Eoutras perguntas surgirão, depois, mais profundas e mais de molde a ditar um compromisso, provocadas pelo testemunho aludido, que comporta presença, participação e solidariedade e que é um elemento essencial, geralmente o primeiro de todos, na evangelização.(51)

Todos os cristãos são chamados a dar este testemunho e podem ser, sob este aspecto, verdadeiros evangelizadores. E aqui pensamos de modo especial na responsabilidade que se origina para os migrantes nos países que os recebem.

Este número enfatiza o papel central, essencial e insubstituível que o testemunho exerce na evangelização. Quando cristãos concretizam um modo de vida centrado nos valores do Evangelho – compreensão, acolhimento, comunhão de vida e de destino com os demais, presença, participação, solidariedade etc. – este testemunho sem palavras que interpela, pois, faz uma proclamação silenciosa valiosa e eficaz da beleza transformadora da Boa Nova. Por isso todos os cristãos são evangelizadores, chamados a dar este testemunho de vida nova.

Necessidade de um anúncio explícito

22. Entretanto isto permanecerá sempre insuficiente, pois ainda o mais belo testemunho virá a demonstrar-se impotente com o andar do tempo, se ele não vier a ser esclarecido, justificado, aquilo que São Pedro chamava dar “a razão da própria esperança”, (52) explicitado por um anúncio claro e inelutável do Senhor Jesus. Por conseguinte, a Boa Nova proclamada pelo testemunho da vida deverá, mais tarde ou mais cedo, ser proclamada pela palavra da vida. Não haverá nunca evangelização verdadeira se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem anunciados.

A história da Igreja, a partir da pregação de Pedro na manhã do Pentecostes amalgama-se e confunde-se com a história de tal anúncio. Em cada nova fase da história humana, a Igreja, constantemente estimulada pelo desejo de evangelizar, não tem senão uma preocupação instigadora: Quem enviar a anunciar o mistério de Jesus? Com que linguagem anunciar um tal mistério? Como fazer para que ele ressoe e chegue a todos aqueles que o hão de ouvir? Este anúncio, kerigma, pregação ou catequese, ocupa um tal lugar na evangelização que, com freqüência, se tornou sinônimo dela. No entanto, ele não é senão um aspecto da evangelização.

Depois de explicitar a centralidade do testemunho, o documento alude outro aspecto da evangelização: o anúncio explícito do reino e de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, portanto, de sua vida, ensinamentos, práxis libertadora e do mistério que se revela em sua morte e ressurreição. Quem enviar a anunciar? Com que linguagem? Como fazer para que ele ressoe e chegue a todos?

Para uma adesão vital numa comunidade eclesial

23. O anúncio, de fato, não adquire toda a sua dimensão, senão quando ele for ouvido, acolhido, assimilado e quando ele houver feito brotar naquele que assim o tiver recebido uma adesão do coração. Sim, adesão às verdades que o Senhor, por misericórdia, revelou. Mais ainda, adesão ao programa de vida, vida doravante transformada, que ele propõe; adesão, numa palavra, ao reino, o que é o mesmo que dizer, ao “mundo novo”, ao novo estado de coisas, à nova maneira de ser, de viver, de estar junto com os outros, que o Evangelho inaugura. Uma tal adesão, que não pode permanecer abstrata e desencarnada, manifesta-se concretamente por uma entrada visível numa comunidade de fiéis.

Assim, aqueles cuja vida se transformou ingressam, portanto, numa comunidade que também ela própria é sinal da transformação e sinal da novidade de vida: é a Igreja, sacramento visível da salvação.(53) Mas, a entrada na comunidade eclesial, por sua vez, há de exprimir-se através de muitos outros sinais, que prolongam e desenvolvem o sinal da Igreja. No dinamismo da evangelização, aquele que acolhe o Evangelho como Palavra que salva, (54) normalmente, o traduz depois nestas atitudes sacramentais: adesão à Igreja, aceitação dos sacramentos que manifestam e sustentam essa adesão, pela graça que eles conferem.

Este número explicita a relação de unidade entre acolhida vital do anúncio e adesão crescente à comunidade cristã enquanto espaço de concretização da conversão a Deus, adesão à Igreja, sacramento visível da salvação, que, com seus diversos sacramentos, manifestam e sustentam, pela graça, a conversão ao reino de Deus. Aqui deparamos com uma questão importante de nosso tempo: o fenômeno crescente dos “cristãos desigrejados”, ou seja, que acolhem a pessoa de Jesus, com seus ensinamentos e práxis libertadora, a centralidade da Palavra de Deus e, portanto, se declaram cristãos, mas sem acolher qualquer vinculação significativa com a Igreja Institucional. Isso acontece por uma série de razões apresentadas que podem ser agrupadas pelo “não reconhecimento da Igreja como sacramento visível da salvação ou enquanto testemunha qualificada e coerente da vida nova em Cristo Jesus”.

Causa de um novo apostolado

24. Finalmente, aquele que foi evangelizado, por sua vez, evangeliza. Está nisso o teste de verdade, a pedra-de-toque da evangelização: não se pode conceber uma pessoa que tenha acolhido a Palavra e se tenha entregado ao reino sem se tornar alguém que testemunha e, por seu turno, anuncia essa Palavra.

Ao terminar estas considerações sobre o sentido da evangelização, importa formular uma última observação, que consideramos esclarecedora para as reflexões que se seguem.

A evangelização, por tudo o que dissemos é uma diligência complexa, em que há variados elementos: renovação da humanidade, testemunho, anúncio explícito, adesão do coração, entrada na comunidade, aceitação dos sinais e iniciativas de apostolado.

Estes elementos, na aparência, podem afigurar-se contrastantes. Na realidade, porém, eles são complementares e reciprocamente enriquecedores uns dos outros. É necessário encarar sempre cada um deles na sua integração com os demais. Um dos méritos do recente Sínodo foi precisamente o de nos ter repetido constantemente o convite para congraçar estes mesmos elementos, em vez de os estar a opor entre si, a fim de se ter a plena compreensão da atividade evangelizadora da Igreja.

É esta visão global que nós intentamos apresentar seguidamente, examinando o conteúdo da evangelização, os meios para evangelizar e precisando a quem se destina o anúncio evangélico e a quem é que incumbe hoje esta tarefa de evangelizar.

Este número coloca o tornar-se evangelizador como critério de autenticidade e de verificabilidade do ser evangelizado, ou seja, quem é evangelizado, pela força transformadora do Evangelho, torna-se um anunciador-testemunha do reino de Deus. Isso atesta que a maioria dos cristãos adultos não foram suficientemente evangelizados, pois, contentam-se com uma adesão passiva e restrita da fé cristã.

Notas:

46. Ap 21,5; 2Cor 5,17; Gl 6,15.

47. Rm 6,4.

48. Cf. Ef 4,23-24; Cl 3,9-10.

49.Cf. Rm 1,16; 1Cor 1,18; 2,4.

50. Cf. n. 53: AAS 58: (1966), p.1075.

51. Cf. Tertuliano, Apologeticum, 39: C.C.L., I, pp. 150-153; Minúcio Félix, Octavius, 9, 31: C.S.L.P., Torino 1963, pp.11-13, 47-48.

52. 1Pd 3,15.

53. Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, nn.1,9,48: AAS 59 (1965), pp. 5,12-14, 53-54; Const. Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et Spes, nn. 42,45: AAS 58 (1966), pp.1060-1061,1065-1066; Decr. sobre a Atividade Missionária da Igreja, Ad Gentes, nn,1,5: AAS 58 (1966), pp. 947, 951-952.

54. Cf. Rm 1,16; 1Cor 1,18.

(Os grifos e os comentários em recuo são nossos.)

Edward Guimarães

Teólogo leigo