“Esses pretos se soubessem, a força que o negro tem, não toleravam cativeiro de ninguém.”
Trecho de um canto de moçambique
A equipe executiva do Observatório da Evangelização teve a oportunidade singular de vivenciar a beleza de uma das manifestações mais tradicionais da cultura popular e religiosa de Minas Gerais: um encontro de guardas de congado. Outros preferem utilizar o termo “ternos de congado”. O evento aconteceu durante a festa de Nossa Senhora do Rosário, em outubro de 2016, na cidade de Belo Vale.
As raízes do congado estão além-mar, no continente africano, mais precisamente no seio das culturas dos povos bantu[1], mas também podemos dizer que se trata de esplêndida manifestação cultural e religiosa erigida no solo brasileiro ao longo do período colonial, do século XVI ao século XIX. O catolicismo português foi enriquecido pelo encontro com as culturas africanas e indígenas. Como bem disse o historiador do cristianismo, frater Henrique Cristiano José Matos:
Um fato decisivo na divulgação da fé cristã em terras brasileiras foi o que hoje chamamos […] de vivência religiosa do homem comum, do povo simples e geralmente pobre. A penetração do catolicismo nas camadas populares realizou-se, mormente, por esse caminho. De Portugal veio com os colonizadores um cristianismo de cunho tipicamente medieval que determina a vivência religiosa da maioria da população portuguesa. A partir desse substrato luso a religiosidade popular no Brasil se desenvolve e enriquece com elementos oriundos das tradições religiosas indígenas e, sobretudo, africanas. Constitui-se, assim, um catolicismo multifacetado, de grande diversidade cultural, ao qual estamos pouco acostumados. Para conhecermos a história de nossa Igreja e consequentemente da evangelização na terra da Santa Cruz, é indispensável levarmos em consideração o fenômeno, tão original e marcante, da [religião] popular que, às vezes, antecede o catolicismo oficial, mas de qualquer forma, sempre o acompanha, não sem tensões e conflitos. O povo vive sua religião nas vicissitudes do cotidiano. O catolicismo brasileiro, desde o seu primórdio, possui um rosto pluralista, extremamente rico e significativo.[2]
Esse “catolicismo multifacetado, de grande diversidade cultural” tem um rosto específico nas tradições rituais do congado e do moçambique, conforme testemunhamos. Queremos compartilhar aqui a riqueza da experiência vivida, seja pela preciosidade estética capitada nos registros feitos pela equipe do Observatório da Evangelização, seja por meio desta reflexão teológico-pastoral.
Pela complexidade do fenômeno cultural e religioso do congado, que se manifesta de forma muito especial em Minas Gerais, e pelos limites deste texto, não temos aqui qualquer pretensão de apresentar um estudo analítico e abrangente sobre essa expressão cultural. Desejamos tão somente partilhar nossas impressões desde a ótica teológico-pastoral e provocar ou alimentar a reflexão autocrítica dos cristãos, especialmente porque muitos bispos, padres e leigos/as ainda não percebem a relevância do reconhecimento eclesial e social do congado, nem a importância da revisão de mentalidades e posturas carregadas de preconceitos e de ignorância da própria história do catolicismo em nosso país. Para Carlos Roberto Moreira dos Santos:
A Congada, com seus ritos, símbolos e ritmos, conserva uma história de um povo que foi proibido de manifestar sua dimensão religiosa própria, mas, pela resistência e teimosia de seus integrantes, continuou a festejar N. Sra. do Rosário à margem da igreja. A forte vivência popular da fé católica no Brasil é constantemente retratada nos documentos eclesiásticos como um fator a ser considerado pelos agentes evangelizadores no exercício de seu trabalho junto ao povo. Trata-se da experiência religiosa do homem comum, do povo simples e, geralmente, pobre.[3]
Nosso texto está dividido em quatro partes. Na primeira, apresentamos alguns pressupostos importantes para nos aproximarmos do congado. Na segunda, mostramos que a pluralidade de manifestações do congado revela a sua riqueza cultural e religiosa. Na terceira, explicitamos a estrutura básica percebida no encontro das guardas de congado na festa de Nossa Senhora do Rosário. E, na última parte, sugerimos pistas para uma reflexão crítica e autocrítica dos cristãos acerca do congado.
Pressupostos para a concretização de aproximação ao congado
Importa superar, terminantemente, a ignorância e a falta de conhecimentos básicos em relação ao congado por parte significativa de cidadãos na sociedade brasileira, sobretudo por cristãos católicos. Falamos de cristãos porque é visível a presença marcante da fé, da devoção e da relação com a Igreja católica nas diversas trajetórias históricas das guardas de congado. Já avançamos significativamente na desconstrução dos muros de preconceito. Mas impressiona-nos que, mesmo depois de tantos anos de resistência, afirmação, teimosia e criativa sobrevivência, ainda exista tanto desconhecimento do sentido e do significado do congado e, consequentemente, tantas barreiras para o reconhecimento municipal, estadual, federal, internacional e, para nós cristãos, eclesial, deste importante patrimônio cultural e religioso da humanidade. Com grande resistência, os/as congadeiros/as organizaram irmandades, consolidaram forte sincretismo religioso e a maioria aprendeu a reconhecer a beleza e importância da fé cristã com suas diversas manifestações: devoções, orações, celebrações, ritos, símbolos, sacramentos… As pontes para o diálogo e o enriquecimento mútuo entre as manifestações culturais e religiosas estão longe de ser concluídas.
Entre os pressupostos que precisam ser cultivados para uma real aproximação ao congado destacam-se: o combate a toda forma de preconceito e exclusão; a disposição e a abertura para conhecê-lo; o apoio fraterno e a solidariedade na luta por sua valorização e reconhecimento cultural, social e eclesial.
Segundo estudiosos das manifestações da cultura popular e religiosa, como Frei Chico, ofm (Francisco van der Poel), o congado é uma realidade cultural e religiosa viva e em contínuo processo de adaptação e transformação, assim como as línguas, as culinárias, as artes, os costumes, as tradições e os saberes. Sobre as origens e a identidade do congado. Para ele:
A identidade do congado, antes de tudo, é brasileira. A partir da África, são 500 anos de história desde a viagem no Atlântico (calunga), a escravidão, as lutas, os reinados e tudo, até hoje… Os irmãos do rosário estão vivos e sua identidade é dinâmica, mesmo quando pretendem conservar suas tradições, sabedorias e organização… As raízes do congado estão na África, principalmente nos povos bantus… No congado, os antepassados, as almas dos escravos, o fundador da irmandade, reis, rainhas, capitães falecidos são lembrados e reverenciados. A cultura congadeira é fiel aos ancestrais.[4]
Pelo que percebemos, há um fio condutor no congado, em suas diversas manifestações: moçambiques, marujos ou marinheiros, catopês, caboclinhos, penachos, vilões, dentre outras. Esse fio é tecido pela cultura da irmandade e da resistência teimosa e criativa para sobreviver e defender a própria dignidade humana. Como também, pela afirmação da identidade cultural e religiosa através da narração oral e ritual de mitos, crenças e tradições. Além disso, pelo cultivo e transmissão às novas gerações de uma consciência da própria dignidade humana, sobretudo em contextos adversos, como foi no longo período da escravidão e, atualmente, continua a ser pelos grilhões do preconceito, da marginalização, da invisibilização urbana e da exclusão social e, infelizmente, religiosa.
Há valores humanos universais muito presentes na prática do congado que estão se perdendo em nosso conturbado contexto urbano e que precisam ser reconhecidos e compartilhados: espírito de irmandade, senso do coletivo, resistência e criatividade nas adversidades, apoio mútuo, solidariedade, relação de bem querer, hospitalidade, partilha de saberes, unidade da pluralidade, respeito mútuo, cultivo da alta autoestima e da alegria de viver, valorização dos idosos, preocupação com educação e inserção social das crianças e dos jovens, dentre muitos outros.
A riqueza do congado se traduz na beleza da diversidade
Há singularidades, facilmente percebidas, conservadas em cada região e, especificamente, em cada guarda de congado. A diversidade não impede o senso da unidade e do respeito mútuo.
Segundo o estudioso de cultura popular Frei Chico, a diversidade das guardas de congado pode ser explicada quando temos presente as suas raízes africanas:
Cada grupo étnico bantu tem seus antepassados como ponto de união. É deles que apreenderam a sabedoria dos provérbios; dos antigos receberam as leis para fazer justiça no caso de uma briga de terras ou entre famílias; é deles que aprenderam a religião, a cura das doenças e os instrumentos musicais e todas as outras coisas da vida. Assim, cada grupo, cada clã, cada povo de bantu tem sua cultura própria. Portanto, existe a civilização bantu na África, o grupo linguístico bantu e muitas culturas bantu.[5]
Sem qualquer pretensão de completude, mas tão somente a título de exemplificação da presença da diversidade, listamos algumas das diferentes manifestações nas guardas de congado. Nota-se imediatamente entre eles os tradicionais moçambiques, com suas latinhas amarradas nos pés, com suas cores, sons e ritmos característicos. Com grande visibilidade, encontram-se também os marujos ou marinheiros, com toda aquela expressão simbólica característica estampada em seus trajes e instrumentos musicais, tais como caixas e chocalhos. Estes, segundo nos foi contado, estampam a submissão dos mouros diante do poder cristão encarnado pelo imperador Carlos Magno. Reconhece-se também a forte influência indígena no congado pela presença dos catopês, penachos e caboclinhos, que estavam unidos aos negros na luta pela sobrevivência ao longo do trágico contexto da escravidão. Há também a presença dos vilões da resistência, ritualizados pelos jovens negros em luta e que entoam cantos com forte crítica social.
Apesar de não termos notado a sua presença na Festa de Nossa Senhora do Rosário em Belo Vale, é importante falar também dos candombes, pois, para o Frei Chico, o candombe é o que há de mais bantu no congado:
É um grupo “de raiz”. Uma espécie de sociedade fechada na qual se reúnem negros de Nossa Senhora do Rosário que desejam ser cristãos sem deixar de ser bantos. Sabendo que, deste modo, correm o risco de alguma perseguição, dão-se ao direito de utilizar uma linguagem enigmática e de não revelar o candombe a forasteiros. No candombe são lembrados os antepassados, ali são tocados os tambores antigos e sagrados (Santana, Santaninha e Chama), e Zâmbi (Deus Criador) está com eles. É assim que sobrevivem as manifestações culturais dos bantu-descendentes do Brasil. Os candombeiros guardam bem seus mistérios e não há livros a respeito. Costumam dizer: “língua que fala muito, merece faca de sapateiro.”[6]
Cada guarda tem seu nome, que geralmente explicita uma devoção que lhe é cara, inscrito na bandeira: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santo Expedito, Santa Ifigênia, dentre outros.
Estrutura percebida no encontro de congados
Em primeiro lugar, reconhecemos a existência de autêntica rede social entre as diversas guardas de congado local e regional. Nota-se a importância dada ao cultivo afetivo dessas redes sociais. São elas que garantem que haja um mútuo reconhecimento e a beleza dos grandes encontros de guardas de congado em cada local. Percebe-se também um calendário, previamente definido e acordado, seja para evitar, dentro do possível, sobreposição, seja para possibilitar que outras guardas de congado desloquem-se para participar, reciprocamente, desses grandes encontros, em cada região onde estão presentes.
Em segundo lugar, ao que parece, cada guarda de congado precisa cuidar de sua agenda social e da infraestrutura de funcionamento: busca de apoios, promoção de eventos, conquista de doações de “padrinhos”, recursos econômicos oriundos das políticas públicas municipais, estaduais e federais de incentivo da dimensão cultural, dentre outros. Muitos/as congadeiros/as põem as mãos no próprio bolso para custear viagens, alimentação, confecção de roupas, bandeiras, coroas, mastros, aquisição ou fabricação de instrumentos musicais etc.
Em terceiro lugar, sobre a dinâmica dos grandes encontros de congadeiros/as percebemos também uma estrutura básica característica. Primeiro, bem cedo, oferece-se um café da manhã para cada guarda visitante em casas agendadas e preparadas para concretizar essa importante manifestação da hospitalidade. Tudo realizado com belíssimos rituais de cumprimentos de bandeiras, de reis e rainhas, com cantos de licença e danças características. Acontecem também os ritos de levantamento e saudação de mastros, que, segundo nos foi contado, simboliza a trágica experiência das travessias, pois, segurar-se nos mastros dos navios negreiros era o único sustento da esperança durante as tempestades no meio do oceano Atlântico. Há também visitas às casas, previamente escolhidas e preparadas para a recepção das guardas. Nada parece acontecer ao sabor do improviso ou ao comando do cronômetro. Não há pressa quando os corações se entregam e se acolhem mutuamente. Na lei da hospitalidade, o coração tem seus protocolos e a sua linguagem exige o cumprimento de ritos de devoção e cuidado. Há cortejos pelas ruas, com os andores da Senhora do Rosário e dos demais santos, com as cortes da realeza conga e suas guardas características. Ponto alto do encontro é a missa com todas as guardas de congado presentes, seguida do almoço compartilhado. Por fim, há a devolução das imagens aos seus locais de origem, o descendimento dos mastros e a fraterna e alegre despedida.
A partir do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), com as mudanças litúrgicas, surge a missa Conga com participação concreta das diversas guardas. Nas palavras de Frei Chico:
A missa Conga é uma manifestação recente. Sempre houve missas nas festas de Nossa Senhora do Rosário, mas não existiam manifestações “afro” com tambores dentro das igrejas. Pelo menos, disso não temos notícia, nem mesmo nos sécs. XVI, XVII e XVIII quando o padroado e a igreja do Brasil ainda não seguiam o direito canônico da igreja tridentina que proibia o uso de qualquer tambor na liturgia. Sabemos que as irmandades cantavam suas missas festivas em latim, e muito solenemente. A missa Conga é do tempo do Concílio Vaticano II quando no Congo surgiu uma famosa “missa Luba” ainda em latim, mas de caráter fortemente africano. No canto do Credo, tambores de sinais avisam a morte de Jesus. Esta missa foi cantada dentro da basílica de São Pedro, em Roma, pelos Trovadores do Rei Balduino, e emocionou o mundo inteiro. Foi naquele tempo que a missa Conga surgiu em Belo Horizonte. Não se trata de uma missa com enfeite de congado e sim de uma celebração da memória da paixão de Cristo unida à memória da escravidão do povo negro. Impressiona muito quando, no início da missa, o congado canta diante da porta fechada da igreja:“Branco ia para a missa, negro é que carregava./ Se dissesse alguma coisa, de chicote ele apanhava./ Branco reza na igreja, negro reza na senzala./ Senhor padre, abra a porta, que o negro quer entrar.”[7]
Na festa de Nossa Senhora do Rosário de Belo Vale foi muito bonito participar de duas celebrações eucarísticas com presença marcante e participativa dos/as congadeiros/as.
Há alguns temas de fundo que são desenvolvidos nos diversos congados. Primeiramente o tema da coroação de reis e rainhas congas, universalizada pela saga de Chico-Rei, o rei feito escravo, mas que venceu a escravidão recuperando a sua nobreza. Nesse sentido, a escolha de quem será coroado rei e rainha conga não é aleatória. Trata-se de um reconhecimento dos/as congadeiros/as de pessoas que encarnam ou tem potencial para encarnar a liderança e assumir a missão de guardar e cuidar da dignidade do congado. Um segundo tema importante é o do encontro com a imagem da Senhora do Rosário, durante o qual os/as congadeiros/as expressam a sua profunda devoção. Um terceiro tema muito presente é o da memória da vida de São Benedito, Santo Expedito e de Santa Ifigênia, verdadeiros guardiães da dignidade dos pretos. Um quarto tema, já mencionado no texto, é aquele veiculado pelos marujos ou marinheiros, ou seja, o tema da submissão dos muçulmanos aos cristãos.
Desafios para a concretização de outra evangelização possível e necessária
Evangelizar é fundamentalmente o anúncio-testemunho de uma boa notícia para quem a recebe. Não há evangelização sem a potencialização da energia vital das pessoas, sem revitalização de suas fontes de sentido e alargamento do horizonte da esperança de um futuro melhor. Jesus de Nazaré, com seus ensinamentos e posturas, passou a vida fazendo o bem e provocando a percepção da presença de Deus como presença amorosa e geradora de vida. Ao recordar a prática de Jesus, as comunidades puderam assim resumir o sentido do Evangelho do Reino por ele proclamado e testemunhado: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10, 10).
Cabe aqui radicalmente afirmar o que o Papa Francisco denomina de conversão pastoral da Igreja. Para isso implica promover profunda revisão dos pressupostos, juízos de valor e preconceitos étnicos, culturais e religiosos dos leigos e, sobretudo, da hierarquia. Sem essa conversão do olhar e do coração nada mudará na relação da Igreja com o congado.
O congado, em sua dimensão religiosa, é profundamente leigo. Consolidado no catolicismo popular, quando predominava “muita reza e muito santo” e, consequentemente, “pouco padre e pouca missa”. Historicamente, a ação da Igreja junto às irmandades e aos próprios congadeiros e congadeiras, desde a romanização do catolicismo brasileiro, foi de intervenção, proibição e negação. Muitas vezes, a solução encontrada para resistir e sobreviver, diante das portas fechadas para o diálogo e a demonização da autonomia, foi a da clandestinidade ou do sincretismo religioso. Nas palavras do Frei Chico:
Existem alguns grupos de congados ligados à umbanda e ao candomblé. Por quê? A partir da segunda metade do séc. XIX, a igreja católica romanizada interditou e até derrubou várias igrejas do rosário para impedir a ação das irmandades dos “homens pretos” ou dos “pardos”. Segundo o direito canônico da época, o vigário da paróquia era presidente nato de todas as irmandades e associações religiosas. Isso trouxe choques violentos entre o clero e as irmandades, até então dirigidas por leigos. Diante desta luta pelo poder, o negro atingido passou a pensar assim: “minha história não posso negar!” E deu-se ao direito de celebrar a memória da África e da escravidão onde fosse bem recebido. Foi assim que costumes dos irmãos do rosário se misturaram com costumes dos cultos afro-brasileiros. Tanto as irmandades do rosário, como os terreiros do candomblé e da umbanda foram uma força muito grande para os negros que tiveram suas famílias destruídas pelo sistema da escravidão… Na verdade, irmandades e terreiros eram substitutos da vida familiar, da união que precisavam para viver e para se criarem.[8]
Além de cultivar radicalmente outro olhar para o congado, os cristãos são chamados a recuperar a eclesiologia consagrada no Concílio Vaticano II, segundo a qual o mistério da Igreja não pode ser reduzido à hierarquia. Ela é fundamentalmente Povo de Deus a caminho. Sacramento da salvação e mediação da presença amorosa de Deus, ela é chamada a tornar-se, de fato, casa da acolhida e da misericórdia divina. Os leigos e leigas e os membros da hierarquia, pelo batismo, tem a mesma dignidade de filhos e filhas de Deus. Recuperar o protagonismo dos leigos e leigas e consolidar estruturas participativas, corresponsáveis e dialógicas na dinâmica eclesial são urgências de nosso tempo.
O encontro da Igreja com o congado e do congado com a Igreja, tendo presente na memória os equívocos do passado e as peculiaridades que foram sendo estruturadas ao longo da história, oferece rica oportunidade para ações evangelizadoras autênticas.
Como começo de conversa, podemos dizer que, por um lado, a Igreja é chamada a abrir mais espaço para acolher e ajudar os/as congadeiros/as a crescer na fé em Jesus Cristo e na vivência da vida cristã libertadora. Oportunizar a eles maior conhecimento da Palavra de Deus e uma reflexão teológico-pastoral libertadora do sentido da autêntica devoção à Maria e aos santos e santos da Igreja, purificando-se e superando manifestações e práticas devocionistas com configurações alienantes da dimensão política, transformadora da vida em sociedade, e ecológica, no cuidado com a Casa comum.
Por outro, os/as congadeiros/as podem ajudar a Igreja a rever seu olhar para a rica tradição cultural e religiosa afro-brasileira e indígena e a ampliar a concretização da dimensão macro-ecumênica dando as mãos na luta em defesa da dignidade de cada pessoa humana, desde os mais pobres e excluídos da sociedade. Além disso, os/as congadeiros/as podem ajudar as comunidades cristãs a encarnar, em suas práticas, valores humanos fundamentais para vivência da fé cristã, tão cultivados e assimilados na vivência do congado.
Para concluir, importa dizer que quem evangeliza, necessária e simultaneamente, também precisa deixar-se evangelizar. O Evangelho do Reino cria um dinamismo crescente e inconclusivo até a pátria definitiva. Nesse sentido, a Igreja é sempre reformanda. O mesmo pode ser dito para a vida de cada cristão. Com tais intercâmbios e trocas de saberes, o fermento do Reino de Deus amplia as suas possibilidades de penetração e de fazer maravilhas na Igreja, na vida das pessoas, na cultura e na vivência diária da religião.
Referências:
BRASILEIRO, Jeremias. Congadas de Minas Gerais. Brasília: Fundação Cultura Palmares, 2001.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Sacerdotes de viola: rituais religiosos do catolicismo popular em São Paulo e Minas Gerais. Petrópolis: Vozes, 1981.
LEERS, Bernardino. Catolicismo popular e mundo rural: um ensaio pastoral. Petrópolis: Vozes, 1977.
MATOS, Henrique Cristiano José. Nossa História: 500 anos de presença da igreja católica no Brasil. (tomo I Período Colonial). São Paulo: Paulinas, 2005.
NERY, Cristiane. Um olhar sobre o congado das Minas Gerais. Belo Horizonte: Cristiane Gusmão Nery, 2012.
PASSOS, Mauro (Org.). A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis: Vozes, 2002.
SANTOS, Carlos Roberto Moreira dos. Congada e reinado: história religiosa da irmandade negra em Jequitibá, MG. Belo Horizonte: PUC Minas. Dissertação de mestrado. 2011
SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
VAN DER POEL, Francisco. Congado: origens e identidade. Publicado em http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/congadorigem.htm, acesso em 15 de outubro de 2016.
Edward Neves Monteiro de Barros Guimaraes
Teólogo leigo, doutorando em Ciências da Religião, professor do Departamento de Ciências da Religião e secretário executivo do Observatório da Evangelização – PUC Minas
Notas:
[1] Neste texto utilizamos “bantu” e não bantus como nas referências citadas em respeito à própria etimologia das línguas bantas, já que tal termo designa o plural de pessoa, ou seja, “bantu” significa pessoas, ou povo, povos etc.
[2] MATOS, Henrique Cristiano José. Nossa História: 500 anos de presença da igreja católica no Brasil. (tomo I Período Colonial). 2.ed. São Paulo: Paulinas, 2005, pp. 195-196.
[3] Cf. SANTOS, Carlos Roberto Moreira dos. Congada e reinado: história religiosa da irmandade negra em Jequitibá, MG. Belo Horizonte: PUC Minas. Dissertação de mestrado. 2011, p. 13.
[4] Cf. VAN DER POEL, Francisco. Congado: origens e identidade em http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/congadorigem.htm, acesso em 15 de outubro de 2016.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] Idem.