Religião, migração e mobilidade humana: por que tanta dor?
O estrangeiro tem um lugar especial garantido na Bíblia: o Povo de Deus deve cuidar bem dele porque também foi forasteiro no Egito e sabe o que é ter sido explorado em razão de sua origem. Do Pentateuco aos Livros Proféticos, passando pelos Históricos e Sapienciais, todo o Antigo (ou Primeiro) Testamento traz advertências sobre a importância de zelarmos sobre essas pessoas que vivem fragilizadas em razão da situação de itinerância e que, por isso, exigem tanta atenção e cuidado. Na escritura sagrada judaico-cristã essa categoria, “estrangeiro”, é, normalmente, encontrada ao lado de “órfãos e viúvas”, ou seja, pessoas que não tem quem lhes defenda os direitos. “Maldito aquele que perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva” (Dt 27, 19) é a advertência reiteradamente retomada, em enfoques vários, nos livros bíblicos do Primeiro Testamento. Tal admoestação também aparece sob diversos prismas nos Evangelhos, culminando com a fortíssima imagem do Pastor que separa as ovelhas dos cabritos e utiliza, como critério de discernimento para classificar umas e outros, o cuidado dos “menores” do Reino (Mt 25, 40). Dentre estes, figura o estrangeiro. E aquele que não o recebe em casa é chamado “maldito” (Mt 25, 42). Ou seja, acolher o menor dos irmãos é inclui-lo na casa-país, casa-terra, casa-vida.
A fronteira, o limiar, a porta da casa traz em si a ambivalência de sentido: pode manter fora, excluir, mas pode também proteger, abrigar…
Atento às exigências éticas e à necessidade de crescimento do compromisso de cada cristão, neste momento de tanta opressão sobre o migrante, o Papa Francisco, desde que calçou “as sandálias do Pescador”, tem alertado a comunidade internacional, questionado as autoridades dos Estados, interpelado as pessoas de boa vontade e, principalmente, exortado os cristãos acerca da urgência de nos voltarmos sobre a questão das migrações e suas causas, atuando para minimizar a dor desses nossos irmãos e irmãs, alguns ainda tão pequeninos e já em fuga. Ninguém foge do que é bom. Lutar pela vida, pela dignidade, tem sido, sempre, uma ânsia da humanidade que migra desde que apareceu sobre a face da Terra. Todos descendemos de migrantes, nômades. Entretanto, o planeta pertence a todos, mas só alguns usufruem de seus benefícios. Eram milhares; hoje são milhões, talvez bilhões os que já nasçam condenados… Por que tanta dor?
Para alimentar reflexões, trocar informações e buscar soluções sobre essa crise humanitária sem precedentes, estudiosos das áreas de Teologia e Ciências da Religião de todo Brasil, e mesmo de outros países, encontraram-se dos dias 13 a 15 últimos em Goiânia: ali aconteceu o VI Congresso da ANPTECRE, com o objetivo de “discutir o impacto da religião nos processos de migração e mobilidade humana no Brasil e no mundo.” Passando por um percurso de itinerâncias dialogais, os congressistas debateram questões que iam dos fundamentalismos e intolerâncias às facetas dos processos migratórios; das transformações das religiões dos sujeitos religiosos em diáspora às violências sofridas por indivíduos em fuga; da necessidade do enfrentamento político da situação migratória às ações construtoras do outro pelo olhar solidário e compassivo; dos estudos de textos que tratam das mobilidades humanas à importância de se fortalecer parcerias e projetos nacionais e internacionais que visem à proteção do migrante e de sua cultura, e outros tantos desafios…
Com fortíssimas interpelações, inclusive a partir de testemunhos sobre o tráfico internacional de pessoas e o tráfico de órgãos humanos, inclusive de bebês, o Congresso provocou a todos/as a dar passos em direção a romper as cercas farpadas e, coerentemente com o chamado humano, saber que só se humaniza aquele que vê e trata o outro, o diferente, como igual; em harmonia com o chamado divino, experimentar que o sentido brota na busca respeitosa de acolher o que é o Sentido para o outro também. E, assim, ser mais. Ser! Mais…
Tânia Jordão