Diante da beleza e intensidade do que foi vivenciado no II Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, de 07-10/09/2017, em Poá – SP, Diocese de Mogi das Cruzes, somos chamados a compartilhar. Foi uma experiência de espiritualidade libertadora fantástica, inovadora, inquietante. Oportunizou aos participantes um rico e afetivo encontro com a diversidade cultural e religiosa, favoreceu o cultivo da abertura dialogal, pautada pelo respeito mútuo e o espírito fraterno, com muitas interpelações éticas e desdobramentos práticos. Por um lado, indicou a necessidade do cultivo esperançado da fé na caminhada, por outro, favoreceu a experiência de que é possível concretizarmos juntos uma nova caminhada de fé libertadora, comprometida com a construção de outra sociedade possível.
Ficou muito forte que a mística do Bem Viver, temática central do evento, é realidade complexa. Ela é simultaneamente uma construção coletiva, processual, sempre inacabada e que exige adesão e cultivo pessoais. Sua pedagogia de liberdade mostrou-nos que independente do momento ou nível de aprofundamento em que a pessoa está – de desconstrução ou de aprofundamento – é possível começar ou avançar juntos para uma convivência mais comprometida com a cuidado para com a dignidade da vida. Basta que esta se sinta acolhida e, aberta, deseje iniciar a caminhada e participar, de forma dialogal e sem juízos prévios, da construção coletiva.
O que ficou certo é que por se tratar de uma experiência, ninguém pode vivê-la pelo outro ou captá-la de fora, apenas por contemplação. Quem entra na chuva, para saber e saborear, tem que se deixar molhar até encharcar.
Essa mística, ainda que tão contagiante e envolvente, no início, a muitos amedronta porque desconstrói paradigmas. A impressão primeira é que ela desarruma a casa, mas, logo, em seguida, ela atrai pela beleza, entusiasma pela leveza, contagia pela alegria e, sobretudo, convence pelo testemunho de quem, com a liberdade libertada conquistada, assume a lógica do “amar e servir” e da superação de barreiras, levando os envolvidos a acolher, irmanar-se com o diferente e, sobretudo, com o que sofre.
Na busca do Bem Viver, os pedaços dos muros desfeitos são reciclados e usados na construção de pontes de ternura, amizade e companheirismo.
Outra característica é o cuidado com o senso de coletivo e de inclusão de todos na mesa da cidadania. Em clima de liberdade e participação, quando tal senso é percebido apequenado ou ameaçado, ele é reivindicado imediatamente por quem se percebe a si próprio excluído da mesa ou reconhece alguém que dela esteja ausente. A rota, a direção, a dinâmica é continuamente avaliada e corrigida com abertura fraterna e sororal.
A mística do Bem Viver é realidade que vai crescendo e aos poucos toma conta de quem nela se deixa envolver. Torna-se capaz de fecundar o coração e a liberdade. Em seguida, tende a transformar-se em ambicioso projeto de vida, fonte de inspiração, critério de discernimento nas ações.
Certos traços ou passos, que foram ficando claros na dinâmica do Encontro, merecem aqui ser explicitados e sublinhados para que favoreça o processo da memória e do aconchegar-se no espaço sagrado do coração:
Quando iluminados pela mística do Bem Viver compreendemos que nossas vidas estão profundamente interligadas – conectadas. E isso tem consequências imediatas, concretas: não dá mais para acolher ou satisfazer-se com qualquer projeto de felicidade e realização pessoal. Por exemplo, sem acolhermos o desafio de participar da luta pela superação da lógica da acumulação neoliberal com seus os subliminares mecanismos de exclusão… sem estarmos comprometidos com a luta pela superação das desigualdades sociais, dos privilégios adquiridos, dos preconceitos de qualquer natureza… sem cultivarmos justiça, ternura, respeito e bem-querer;
No Bem Viver somos chamados a cuidar, em meio às contradições e trevas do caminho, da chama da esperança. Cultivando o bom humor, a alegria, a leveza, a simplicidade, a generosidade, a gratidão, o afeto fraterno e a paciência no lento processo histórico… Fazer do dom de nossa vida, com liberdade e autonomia, um serviço para a edificação de algo maior: o bem comum. Por isso é fundamental cultivarmos admiração pelos profetas e profetizas que encarnam o Bem Viver ou que deram a vida para que o mundo seja melhor;
Para o Bem Viver importa comprometermos com a busca e a conquista do equilíbrio afetivo. O silêncio, a meditação, a oração, a contemplação, mas também o amor-amizade revelam-se mediações importantes para nos centrarmos, internalizarmos valores, ensaiarmos indignação ética e termos coragem de andar na contramão… Isso, de fato, acontece quando conquistamos lucidez e clareza crítica. Sentimos necessidade de concretizarmos outra forma de vivermos a nossa dimensão sociopolítica, econômica e religiosa. Exigimos que nossa convivência e partilha de vida sejam mais autênticas;
O Bem Viver nos provoca e nos convoca a participar da construção diária de outra sociedade possível. Passamos a desejar concretizarmos uma justiça que ergue o caído a beira do caminho. Passamos a querer a inclusão de todos na mesa da dignidade, a começar por quem está à margem. Passamos a acolher, reconhecer e dialogar com quem está sem vez e sem voz na sociedade. Passamos a praticar a lógica do respeito e do cuidado para com a Casa Comum e a defender a igual dignidade cidadã;
Discernimos que na lógica do Bem Viver não é possível pretender neutralidade. Ao contrário, precisamos tomar partido, decidir e escolher lado… Isso porque o nosso critério passa ser o da dignidade da vida, o da denúncia profética contra toda forma de violência e exclusão social. Implica assumir a coragem de assumir riscos… E, de fato, muitos companheiros e companheiras continuam a ser perseguidos e assassinados (na véspera do primeiro dia do encontro, no dia 06/09/2017, a CPT do Mato Grosso, na região onde recentemente vários trabalhadores foram bárbara e covardemente assassinados, lançava nota de repúdio diante do assassinato de Tereza Rios e Aloísio da Silva);
A dinâmica do Bem Viver nos provoca e nos convoca a acolher e promover os saberes marginalizados da cultura popular, a dar as mãos na caminhada soberana dos povos originários, comunidades tradicionais, movimentos populares, grupos de base. Importa assumirmos conscientemente os riscos de participar das diversas lutas por cidadania: terra, teto, trabalho, mas também saúde, educação e arte. Os rostos dos pobres e excluídos nos interpelam. Tornam-se lugar privilegiado de manifestação e encarnação do Sagrado, Deus da Vida;
Assumir a lógica do Bem Viver exige reinventarmos, criativamente, as rodas de conversa. Descobrirmos ou criarmos com elas novos mecanismos de alfabetização cidadã, inclusão e participação na dinâmica da sociedade. Implica, igualmente, fazermos sempre análise crítica e autocrítica da conjuntura vivida, captar cenários, perceber tendências e discernir desafios e urgências que se apresentam diante de nós;
Somos chamados a cuidar de nossa coerência ética e cultivar o imprescindível senso do coletivo e de amizade com os que caminham conosco. Isso exige deixarmos de lado tudo o que não é legítimo porque discrimina ou impede a inclusão do outro na mesa da dignidade da vida. Importa, portanto, denunciar profeticamente a ecodestrutiva e excludente lógica do capital e desconstruindo a perversa mentalidade neoliberal que nos reduz a meros objetos consumidores e expectadores da dinâmica sociopolítica, econômica e religiosa;
Na mística do Bem Viver, não importa se aquela plenitude sonhada e desejada que delineamos em nossas utopias de justiça e paz só chegará no final.Descobrimos que o que dá sentido à vida é o caminhar; o cultivar e compartilhar a alegria da cumplicidade e da fé na caminhada; o irmanar-se com os que caminham conosco, participando, com tudo que somos, da luta e perseverando altivos na fidelidade guerrilheira até o fim. Por isso somos chamados a celebrar cada passo dado, cada pequena conquista e festejar, com nossos corpos e almas, as belezas e encantos do caminho;
Na mística do Bem Viver, como somos todos aprendizes diante de uma realidade em obra e sempre inacabada, nossas identidades deixam de ser assassinas ou tribais. Descobrimos que o outro, o diferente é irmão. O que celebramos, festejamos, saboreamos e aprofundamos reflexiva e criativamente, na alegria compartilhada nos dias do evento, recordou-nos fortemente o que eternizou Gonzaguinha em sua canção “O que é, o que é?”: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”.
Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães
Secretário Executivo do OE PUC Minas
Ps. Participamos do processo de elaboração e organização do I Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade libertadora, em 2014, na cidade de Fortaleza e do Encontro Regional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, em 2016, na cidade de Belo Horizonte. Estivemos presente também durante todo o II Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora, em Setembro de 2017, na cidade de Poá.