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Paróquia Nossa Senhora do Morro: Um desafio inspirador para toda a Igreja

Dados geográficos, históricos e dinâmica pastoral de evangelização.  

Como anunciar e testemunhar o Evangelho em contexto de vilas e favelas? É possível concretizar uma presença pública significativa da Igreja? Que significaria uma Igreja, de fato, fonte de boa nova, sinal de esperança, de promoção da identidade social e de construção de sentido, lugar de partilha e de defesa da vida, espaço de encontro familiar e de amizade, de troca de idéias, de unir forças e lutar pela igual dignidade cidadã? A equipe executiva do Observatório da Evangelização foi ver de perto como se dá a presença da Igreja e as ações evangelizadoras que acontecem na Paróquia Nossa Senhora do Morro. Apresentaremos a seguir os resultados de nossas observações.

Localizada na zona sul da cidade de Belo Horizonte, a Vila Barragem Santa Lúcia, também chamada Aglomerado do Morro do Papagaio, surgiu às margens das políticas públicas básicas, como tantas outras favelas urbanas: sem qualquer planejamento urbanístico ou saneamento básico; sem previsão de acesso à educação, saúde, mobilidade urbana, alimentação e trabalho dignos. Situada na região Episcopal Nossa Senhora da Piedade e, mais precisamente, na forania Nossa Senhora do Carmo, foi criada em 25 de abril de 1987. Trata-se de uma organização eclesial singular, não somente por seu sugestivo nome, como também por seus limites que não obedecem ao tradicional critério da territorialidade, mas ao de fronteiras sociais.

Antes da fundação da Paróquia, a Barragem Santa Lúcia estava vinculada à comunidade paroquial de Nossa Senhora, Mãe da Igreja, na Vila Paris. E foi durante a celebração da festa da Visitação de Nossa Senhora, data litúrgica tradicional no calendário católico, que o pároco, Pe. Danilo Mamede de Campos Rodrigues, disse algo inspirador e que provocou reflexões pastorais posteriores: “Maria precisa subir o morro do Papagaio para visitá-lo e conhecê-lo”. Atribui-se a tal acontecimento a origem do nome, que batizaria como padroeira da futura paróquia: “Nossa Senhora do Morro”. A data 12 de outubro, dia que em todo Brasil se celebra Nossa Senhora Aparecida, foi escolhida como festa da padroeira. Naquela oportunidade, promoveram-se vários momentos formativos, a partir de temas escolhidos, como: moradia, trabalho, saúde, segurança, que foram desenvolvidos ao longo da preparação para a comemoração.

Muitos dos moradores desse Aglomerado são oriundos do Norte de Minas. Vieram para a capital com aquele sonho de aqui construir uma vida melhor. Como homo culturalis que somos, eles procuram encontrar ou construir meios de preservar seus valores, hábitos, costumes, tradições. Merece destaque aqui a profunda religiosidade trazida na bagagem: devoções, procissões, novenas, coroações, festas, congados, ofícios de Nossa Senhora, terço dos homens etc. Como reunir tais expressões e adaptá-las aos desafios da nova situação urbana? Surgiram comunidades nas quais as pessoas passaram a se encontrar para partilhar a vida, a fé, os anseios e esperanças, os sofrimentos e as dores. São, atualmente, cinco comunidades de fé, cada qual com suas particularidades: Santa Lúcia, Santa Rita, São Bento, Nossa Senhora da Esperança, e Maria, Estrela da Manhã. As duas primeiras, com maior participação, e as duas últimas, com os dias contados, já que tudo indica que serão demolidas, devido ao programa Vila Viva da Prefeitura.

Atualmente, exercem ali o ministério presbiteral o Pe. Mauro Luiz da Silva, como pároco e curador do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), e o Pe. Claudionei Ramos Pereira, como vigário paroquial. Juntamente com dois conselheiros de cada comunidade, eles planejam, avaliam e discutem os caminhos percorridos e a percorrer, para concretizar ali a dinâmica pastoral e de evangelização nesse espaço eclesial. Na entrevista com a equipe executiva do Observatório, o Pe. Mauro relatou-nos as motivações que alimentam o ardor missionário de estar neste contexto pastoral há 16 anos: ser pastor da comunidade, o desejo pessoal de viver nessa realidade, a esperança do povo, a alegria das pessoas em ser Igreja, enfim, a luta do povo pelo reconhecimento de sua dignidade humana e cidadã.

            Várias pastorais buscam ser, nessa desafiadora realidade, um sinal do Reino através de suas atividades, evangelizando e resgatando a dignidade das pessoas. Merecem destaque, dentre outras, a pastoral do negro, da saúde, da sobriedade, da juventude, da criança, da catequese e da comunicação popular. No âmbito dessa última, em todos os domingos é distribuído um informativo contendo as atividades da Paróquia e uma mensagem do Pároco, redigida a partir da leitura do Evangelho. Há ainda atendimento e apoio aos idosos, distribuição de alimentos, assistência jurídica, reforço escolar e biblioteca comunitária. Segundo consta, já houve acirrada disputa de espaço eclesial entre as CEBs, com forte presença no passado, e o movimento da renovação carismática, que hoje predomina nos espaços eclesiais. A catequese merece uma palavra especial. Ela consolida sua caminhada com bastante autonomia. Os catequistas buscam a própria capacitação, definem, com liberdade, os conteúdos a serem trabalhados. Eles decidiram não adotar material específico, a não ser a Bíblia. Procura-se o pároco quando encontram dificuldades ou quando há dúvidas sobre um conteúdo a ser trabalhado, bibliografia etc. Concretiza-se, pois, a ação evangelizadora da paróquia através de pastorais, bem como de movimentos, celebrações, novenas, momentos de formação, encontros bíblicos e das tradições que as pessoas trazem consigo.

O cenário religioso na Vila Barragem Santa Lucia, apresenta muitos desafios. Há uma pequena porcentagem de católicos, cerca de 20%, segundo estimativa do próprio pároco. Há forte presença, mas diluída e fragmentada, de várias igrejas cristãs evangélicas, sobretudo pentecostais e neopentecostais, que ali disputam território e consolidam ou não o seu espaço. Não há diálogo entre as diversas denominações cristãs. Verifica-se ainda a presença de grupos espíritas e de religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda.

Por situar-se na zona sul da capital mineira, onde se encontram os terrenos mais valorizados e caros da cidade, a presença dos pobres é vista sempre como uma realidade incômoda, especialmente, por aqueles que gerenciam a especulação imobiliária. Nutrem-se do desejo de concretizar projetos que expulsem os moradores mais pobres para longe dos “bairros dos ricos”. Os moradores de favelas situadas em “áreas nobres” são considerados invasores, um estorvo, quase sempre, criminalizados ou rotulados, inclusive pelos grandes meios de comunicação, como os responsáveis pela violência, tráfico de drogas, furtos e roubos. Devido a um projeto de urbanização – construção de um parque ecológico e uma avenida – foi aprovada a desapropriação de duas comunidades tradicionais pelos órgãos públicos, depois de um longo processo de cooptação das lideranças locais por grupos que representam os grandes interesses econômicos. Nas palavras de Pe. Mauro:

 

“O movimento de enobrecimento de certas regiões das grandes cidades, também conhecido como gentrificação, será alvo de nossa análise em busca das razões que levam à destruição total de duas das cinco comunidades que compõem o Aglomerado Santa Lúcia, a vila Esperança e a vila São Bento, que estão com data marcada para desaparecerem do mapa. Assim, o espaço ocupado por suas ruas, becos, casas, pessoas e histórias será transformado em um parque ecológico e uma avenida.”

 

A demolição das comunidades inclui dois templos católicos, com seus espaços sagrados. Os moradores estão recebendo uma indenização simbólica e sendo transferidos para um bloco de prédios construídos na proximidade da Vila, em terreno situado nos limites da paróquia de São Bento, vizinha a Nossa Senhora do Morro.

 

O surgimento do Muquifu como resposta aos desafios da caminhada

            O Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, o Muquifu, talvez seja a criação mais original e singular da Paróquia Nossa Senhora do Morro. Nasceu com a proposta de ser um instrumento de oposição à injustiça social, e de resistência diante do risco iminente de expulsão dos favelados dos centros urbanos e de reconhecimento e preservação do patrimônio, das histórias, das memórias e dos bens culturais dos moradores de quilombos ou favelas de Belo Horizonte. Ele resultou de um longo processo de gestação, iniciado quando o Pe. Mauro, recém-chegado à paróquia, mais precisamente no dia 10 de dezembro de 2000, encontrou um grupo de pessoas que refletia sobre direitos humanos e raciais. Naquela época, por ocasião da celebração do dia da declaração dos direitos humanos, originalmente dia 10 de dezembro de 1948, o grupo resolveu confeccionar e espalhar pelo morro cem placas com os seguintes dizeres: “cem vezes paz para você”. Logo depois, formou-se uma comissão de paz composta por pessoas que, até então, não faziam parte do grupo. Essa iniciativa foi impulsionada pela crescente onda de violência presente no aglomerado a partir do assassinato de um policial. Depois desse acontecimento, o Morro foi ocupado pelas forças policiais em busca do assassino. Foi morto um rapaz inocente que tinha o mesmo nome ou apelido do suposto assassino, pessoa que até hoje a comunidade não reconhece como autor da morte do policial. No ano seguinte a esse fato trágico e na tentativa da construção da paz, foi elaborado um kit: “como sobreviver na favela em tempo de exclusão”. Em seguida, celebraram-se três semanas denominadas “quilombo do papagaio”, durante as quais foram discutidos temas diversos como moradia, saúde, trabalho, memória. Nesse ínterim, o grupo envolvido nessas vivências sugeriu a construção de um espaço no qual se pudesse garantir e preservar a anamnese daqueles moradores, cerca de quatrocentas famílias que, devido ao programa “Vila Viva”, estavam sendo deslocados para outras áreas. Criou-se, então, o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos com o objetivo de “garantir o reconhecimento e a salvaguarda das favelas, os verdadeiros quilombos urbanos do Brasil”. Recordando as palavras do Pe. Mauro:

 

“Em movimento diferente das práticas de memória-espetáculo, o Muquifu propõe a salvaguarda daquilo que resistir aos tratores e à ganância da especulação imobiliária, nas comunidades afetadas. Nossa proposta é, por meio do trabalho da memória, discutir com a cidade a presença definidora das culturas africanas na formação da cultura brasileira, além da importância de criar meios para que os favelados sejam os protagonistas das ações de tutela e preservação deste patrimônio material e imaterial.”

 

O Museu tem dois espaços físicos, um situado no centro do aglomerado e outro na Comunidade Maria, Estrela da Manhã, também conhecida como dos Santos Negros, no limite entre duas realidades separadas pelo fosso entre ricos e pobres. As pessoas do Aglomerado foram convidadas a contar a sua história e deixar no Muquifu alguma coisa significativa e importante ligada a sua trajetória de vida: fotografias, objetos, imagens de festas, danças, celebrações, instrumentos musicais, receitas e histórias que representam a tradição e a vida cultural dos moradores. Foi assim que foram surgindo os primeiros acervos desse museu incomum.

Trata-se, como se pode notar, de algo trabalhado pela museologia social, capaz de reconhecer as favelas como “lugares não apenas de sofrimento e privações, mas, também, de memória coletiva digna de ser cuidada”. Embora conte mais de dois anos de existência, ele ainda não é tão conhecido pela cidade de Belo Horizonte e, inclusive, ainda está em processo de ser um espaço apropriado pelos próprios moradores do aglomerado. No entanto, já possui uma expressão internacional. Não se trata simplesmente de um espaço cultural, mas de um museu, com três pilares: o acervo propriamente dito, a comunidade que abriga o espaço físico com a cultura de seus moradores e o dado social enquanto fomento de transformação do lugar. O museu tem como objetivo maior a preservação da cultura do território.

            O Muquifu contempla, criativamente, vários aspectos da vida das pessoas e das realidades por elas vivenciadas. Não apenas preserva a história das pessoas, mas também busca fomentar a identidade e elevar a autoestima das mesmas. Através das várias exposições que oferece, possibilita reflexões a partir de temáticas específicas como: a vida dos trabalhadores da construção civil, das trabalhadoras domésticas, as relações de gênero e entre as etnias, o cultivo da memória do aglomerado, os sentimentos expressos nos olhares dos moradores, a memória do grupo de folia de reis já extinto, memórias dos quilombos urbanos e favelas etc.

 

Sobre a evangelização no Aglomerado Santa Lúcia

            Considerando este breve relato da experiência, destacamos, como principal característica das ações evangelizadoras que acontecem na Paróquia Nossa Senhora do Morro, a busca de valorização da dignidade das pessoas ali residentes através do resgate da memória e da construção da identidade sociocultural e religiosa. Seu objetivo maior revela-se na promoção e defesa da cidadania.

Concretiza-se ali uma presença da Igreja não autorreferenciada, visto estar comprometida com a denúncia contra as formas de exclusão social da cidade, especialmente aquelas promovidas pela especulação imobiliária, pelos interesses econômicos e pela avidez de lucros. Não tem como preocupação primeira tornar-se hegemônica ou transformar, pelos próprios valores, a cultura popular.

Se, por um lado, os desafios da evangelização em contexto urbano marcado pela exclusão social são graves e urgentes, por outro, o testemunho da fé, a presença solidária, a partilha da vida em comunidade, o senso de pertença, a perseverança na luta, a mobilização motivada pela esperança cristã, o empenho pelo respeito e dignidade das pessoas contribuindo com a autoestima, atestam e sinalizam a fecundidade das sementes ali lançadas. O Muquifu, com suas ações e proféticas provocações, já não seria um dos frutos suculentos da caminhada da ação evangelizadora? Nesta realidade ímpar, a opção preferencial pelos pequenos, simples, humildes, tem sua aplicabilidade. Eles encontram espaço, são reconhecidos, valorizados e, juntos, buscam e testemunham os sinais do Reino.

O Observatório de Evangelização, a partir da narrativa dessa significativa experiência de evangelização no Aglomerado da Barragem Santa Lúcia, deseja contribuir para que outras paróquias e comunidades cristãs encontrem maior motivação e inspiração para suas trajetórias.

Joel Maria dos Santos

e equipe executiva do Observatório da Evangelização