Ir para página principal

Paróquia Bem Aventurada Dulce dos Pobres: Semente em Terra Boa

Dulce dos Pobres: Semente em terra boa



O Reino do céu é como uma semente de mostarda que um homem pega e semeia no seu campo. Embora ela seja a menor de todas as sementes, quando cresce... (Mt 13, 31-32)



I – Afagar a terra

A minha política é a do amor ao próximo. (Irmã Dulce)





O filme Irmã Dulce acaba de estrear em todo o país. Há quem nunca havia ouvido falar no Anjo Bom até o momento, e se surpreende com as provocações que o filme proporciona [Para saber mais acerca da vida dessa mulher generosa, intrépida, justa vale consultar: https://www.irmadulce.org.br/portugues/religioso/vida-de-irma-dulce]... Em Belo Horizonte, no Aglomerado da Serra, há pouco mais de dois anos esse nome também vem provocando reflexões, interpelações, inquietações, questionamentos. 



Era o dia 2 de setembro de 2012 quando foi inaugurada uma nova paróquia, nas encostas da Serra do Curral, de onde se pode contemplar algo dessa Belo Horizonte. Não importa se fazia frio ou calor naquela quase primavera, importa é que algo novo havia sido gestado e o sinal disso era o nascimento de uma nova paróquia, que fora batizada com o nome de Bem Aventurada Dulce dos Pobres, e isso inquietou muita gente...



Mas, por que até 2012 ainda não havia uma paróquia no Aglomerado? Como era a presença eclesial cristã católica no Aglomerado? Como se dava, então, o encontro entre fé e vida, comunitariamente? Afagar a terra... Tocar com cuidado e ternura essa realidade para conhecê-la. 



Padre Orlando Azevedo [Padre Orlando atuava ali, antes da criação da Paróquia, como vigário da Paróquia Santa Efigênia dos Militares e coordenador da Rede de Comunidades do Aglomerado da Serra.]  relata que nas oito vilas que compõem o Aglomerado da Serra, já havia, antes da estruturação da Paróquia, oito comunidades, as quais estavam ligadas a cinco paroquias da região centro-sul da capital mineira, de duas foranias distintas: A Comunidade de São Lucas estava vinculada à Paróquia Santa Efigênia dos Militares; Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora de Lourdes estavam unidas à Paróquia São João Evangelista. Já a Paróquia de Santana respondia pelas Comunidades de Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora Aparecida. À Paróquia de Nossa Senhora Medianeira e Santa Luzia, vinculava-se a Comunidade de São Miguel; e à do Divino Espírito Santo, a Comunidade de Santa Teresinha. 



Como se pode notar, na perspectiva eclesial, não havia uma identidade unificadora que interligasse as diferentes comunidades do Aglomerado. As paróquias citadas foram assumindo, pouco a pouco, o cuidado das comunidades: formação de lideranças cristãs, orações, devoções, celebrações eucarísticas dominicais, catequese, pastorais e movimentos. Não havia ainda, de forma consolidada, o investimento na formação da identidade cristã local. Os sacramentos da iniciação cristã e o matrimônio, como muitos outros serviços eclesiais, não eram oferecidos e nem buscados nas próprias comunidades do Aglomerado. Tudo estava orientado e registrado, como de costume, para as matrizes paroquiais sob as quais estavam vinculadas.



Antes da criação da paróquia Bem Aventurada Dulce dos Pobres, cada comunidade eclesial que ali existia tinha sua vida própria sem qualquer conexão com as demais. Umas possuíam mais recursos humanos e materiais, outras menos. Em algumas havia o Conselho para cuidar, discutir os desafios da caminhada e prestar contas à comunidade, em outras, não.  Mas como configurar uma presença eclesial significativa em contexto de vilas e favelas? Que especificidades importa considerar?





II – Conhecer os desejos da terra 

O semeador saiu para semear (Mt 13, 3)



Localizada em um aglomerado subnormal, isto é, um conjunto habitacional disposto de forma desordenada e densa, a partir de ocupações, a Paróquia Bem-Aventurada Dulce dos Pobres é constituída como uma “Rede de Comunidades” em que cada uma das mesmas corresponde a uma vila do Aglomerado da Serra, situado na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. São, portanto, oito comunidades correspondentes as seguintes vilas: Vila de Nossa Senhora da Conceição, Vila Marçola, Vila Nossa Senhora do Rosário, Vila Santana do Cafezal, Vila Novo São Lucas, Vila Nossa Senhora de Fátima, Vila Nossa Senhora Aparecida e Vila Fazendinha [Dados do CEGIPAR (Centro de Geoprocessamento de Informações e Pesquisas Pastorais e Religiosas)]. Segundo o censo de 2010, era a maior favela da capital mineira, com 46 mil habitantes. Já a Câmara Municipal de Belo Horizonte estimava em mais de 60 mil os seus habitantes [http://www.cmbh.mg.gov.br/chapeu/aglomerado-da-serra], em 2013. 



Atualmente, segundo as secretarias municipais da saúde e da educação, existem quatro escolas municipais, e quatro postos de saúde no Aglomerado para atender às necessidades de toda essa população. Em relação à comunicação, há duas rádios: Favela e 98 FM. A primeira funcionou vários anos como pirata, depois se tornou nacionalmente conhecida por inspirar e dar nome ao filme do cineasta mineiro Helvécio Ratton.



Quando, em geral, é veiculado algo sobre as favelas, o que repercute via grande mídia são relatos acerca da pobreza, certo tipo de música (pagode, funk, rap...), violência, tráfico de drogas. No Aglomerado da Serra há um pouco de tudo isso. Por exemplo, ao lado de uma das vilas, com entrada pela Avenida do Contorno, há um local, denominado pelos moradores como “Del Rey”, que é um ponto de encontro de onde às noites se ouve pagode e outros ritmos.  Ali também se localiza o campo de futebol Bola de Ouro, uma referência naquela região. Abaixo do Del Rey está a Chácara. Na confluência dessas duas regiões está a área considerada a mais violenta da Serra, por ser palco de constantes confrontos entre grupos traficantes rivais. O Beco Dona Alvina, que é o maior do aglomerado, é controlado pela facção "Del Rey", que, do alto, controla a entrada e saída dos moradores dessa parte da favela, deixando-os muitas vezes acuados; o que faz com que procurem se refugiar em outra parte da favela, nos becos da Rua Sacramento. Porém, também essa área é controlada por traficantes. Portanto, há, sim, essa realidade da qual ouvimos falar reiteradamente como sendo a vida do Aglomerado. 



No entanto, o Aglomerado da Serra é muito mais... Há que se conhecer os anseios, os desejos dessa terra, do povo trabalhador que ali vive. São pessoas sofridas, de origem interiorana, muitas das quais da roça, que para a capital vieram em busca de melhores chances na vida para si e para os filhos e, também, atraídas pela modernidade. Normalmente, ninguém sai de um lugar que está bom para se aventurar em uma cidade estranha em busca de trabalho. O êxodo se dá por necessidade. E quando os migrantes começam a viver em uma das vilas do Aglomerado, passam a conhecer na pele a criminalização da pobreza. A segregação espacial marcada pelas fronteiras urbanas traz em seu bojo todo o conflito de construção de identidades e marcos de pertencimento. O Aglomerado é majoritariamente constituído por trabalhadores e não é justo que um migrante trabalhador seja criminalizado por ali viver. Há uma cultura pujante nesse espaço urbano, feita de sons, cores, movimentos, memórias, tradições, que necessita ser reconhecida e valorizada. E, para melhor conhecer a realidade, há que se considerar ainda que nas casas já não se encontram os estereótipos de pobreza de tempos atrás; as pessoas, em geral, possuem meios de subsistência e relativo conforto. 



Historicamente constituídas e marcadas pelo estigma social, as favelas, ou vilas como são chamadas em Belo Horizonte, são naturalmente relacionadas como o espaço, por excelência, da marginalidade, da violência, da ilegalidade. Ainda que presentes na cidade, são consideradas como uma excrescência da mesma. Assim, uma favela ou, ainda mais, um conjunto de vilas ou favelas é considerado uma ameaça aos interesses de um projeto de cidade. Como se ver livre dessa incômoda paisagem, que teima em crescer sobre os montes, obstaculizando a construção da civilização contemporânea? Há que se nortear as políticas públicas intervencionistas para expulsar sempre para mais distante aqueles que enfeiam a paisagem, pensam alguns. Eis porque, tão logo surgem favelas, brotam também programas governamentais para erradicá-las, com um discurso de melhorias de condição de vida para aquela população. Entretanto, o que se pretende, muitas vezes, é o controle da expansão de uma classe popular em uma “zona nobre” da cidade. 



III – Cio da terra, a propícia estação

Outras sementes, porém, caíram em terra boa... (Mt 13, 8)



Que significa evangelizar em contexto de vilas e favelas? A opção preferencial pelos pobres foi assumida, explicitamente, pela Igreja Católica na América Latina na Conferência Episcopal de Medellin, em 1968. Esta opção é confirmada nas demais Conferências Episcopais até a última, de Aparecida, em 2007.  Como anunciar e concretizar, no Aglomerado da Serra, a boa nova do Reino de Deus encarnada na pessoa de Jesus de Nazaré? Já não é chegada a hora, a estação propícia para cultivar o chão do Aglomerado com uma atenção especialmente voltada para aquela gente?



A Igreja Católica assumiu o compromisso de evangelizar considerando os novos desafios. Acontece que, segundo o último censo, sua presença e atuação significativa não têm sido tão expressivas nas vilas e favelas. O IBGE [http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo] afirma que o número de católicos cai, enquanto o número de cristãos de outras denominações, como também de espíritas, candomblecistas, umbandistas e sem-religião crescem nas periferias da capital mineira.

 

Que respostas pastorais têm sido buscadas no contexto da Arquidiocese de Belo Horizonte? Nas Assembleias do Povo de Deus da Arquidiocese, na elaboração das diretrizes para ação evangelizadora e nos planos de pastoral arquidiocesano, regionais e paroquiais, tais interpelações são recorrentes e desafiadoras. Nesse sentido, após estudos solicitados ao Centro de Geoprocessamento de Informações e Pesquisas Pastorais e Religiosas – CEGIPAR, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte, Dom João Justino, bispo referencial para a Região Episcopal Nossa Senhora da Piedade, onde está situado o Aglomerado da Serra, juntamente com o conselho presbiteral tomam a decisão de criar uma paróquia para o Aglomerado, voltada a atender os desafios específicos de evangelizar naquela realidade urbana.



Ora, são muitos os desafios encontrados para a consolidação da nascente paróquia. Alguns, já superados, a maioria, entretanto apenas desponta no horizonte... Ali atuavam, quando da pesquisa do Observatório da Evangelização (final de 2014), três presbíteros: Pe. François Marie Lewden (Pe. Chico), Pe. Raphael Eustáquio do Carmo e Pe. Wagner Calegário de Sousa, o pároco.



Antes, como já fora dito, a presença eclesial no Aglomerado acontecia de forma fragmentada; cada parte entregue aos cuidados de diferentes paróquias, todas situadas na confluência de bairros nobres da capital (Serra, Santo Antônio, Santa Efigênia, Mangabeiras) com o Aglomerado da Serra. O relacionamento eclesial caracterizava-se, predominantemente, pelo viés assistencial consolidado na tradição eclesial paroquial, a saber, a partir da ereção de capelas, localizadas nas diferentes vilas do Aglomerado, ligadas às matrizes e delas dependentes, espiritual e materialmente. As comunidades das vilas recorriam à igreja-mãe tanto para os sacramentos quanto para o seu sustento material. Aos poucos, posteriormente, essas comunidades foram sendo organizadas em rede, como forma de desconstruir o esquema eclesial anterior. Sobre esse momento, Padre Orlando declara:



Em 2009 deu-se início um processo diferente. A partir da criação de um conselho pastoral que contemplava todas as comunidades representadas, surgiu a ideia de se criar uma rede de comunidades. Qual era a ideia da rede? Realizar encontros de formação e algumas celebrações anuais que fossem em conjunto. O objetivo era despertar nas comunidades o sentido da comunhão e de pensar de forma coletiva, já que em todas as comunidades havia a presença do presbítero, dominicalmente. 



Com a criação do conselho muitas ideias e questionamentos foram surgindo, pois as comunidades não queriam ser transformadas numa área paroquial. Sendo assim, pensou-se em dividir as oito comunidades em três setores. Com a presença de três presbíteros (Padres João, Sádi e Orlando) isso foi possível, porém, os outros dois presbíteros tinham celebrações vinculadas às suas Paróquias: Pe. Sádi (Santana) e Pe. João (São João Evangelista) [Padre Sádi Leffa Cardoso e Padre João Batista da Silva]. 



À medida que as reuniões com o conselho pastoral ocorriam mensalmente, a consciência da rede se fortalecia, pois o processo nasceu com a participação dos presbíteros e das lideranças de cada comunidade. 



Foi construído um caminho de formação durante três anos. Houve vários encontros com lideranças e um encontrão das comunidades com o objetivo de fortalecer o caminho das comunidades de base no Aglomerado.



Padre Orlando ficou, durante esse período, como coordenador dessa rede de comunidades, as quais ainda estavam vinculadas às diferentes paróquias. Segundo as narrativas evangélicas, os primeiros discípulos também percorreram, “durante três anos”, um longo caminho de formação. E como aconteceu com eles, acontece hoje, a formação não é o fim do caminho. Trata-se apenas de uma etapa na complexa e desafiante caminhada de seguimento do Mestre de Nazaré. 



Ao Observatório, Padre Orlando Azevedo narra os desafios enfrentados então, na perspectiva financeira: a partir da proposta de construir uma rede paroquial com as comunidades do Aglomerado, “o setor financeiro passou a cobrar do coordenador da rede (neste caso, o próprio Pe. Orlando) a prestação de contas de cada comunidade. Confesso que foi difícil, pois havia alguns vícios em algumas comunidades.” Afirma que em todas elas “os recursos eram depositados em conta de pessoa física, exceto na comunidade São Lucas, que abriu uma conta em nome da Mitra Arquidiocesana.”  Isso se deu devido a nunca ter sido exigida uma prestação de contas de cada comunidade pela contabilidade das paróquias às quais estavam vinculadas. As lideranças assumiam os recursos locais e os gerenciavam segundo as necessidades da comunidade. Elas, frequentemente, não conseguiam diferenciar uma nota fiscal de uma nota de balcão. O fato é que, segundo ele, aos poucos, todas conseguiram construir seu espaço celebrativo com recursos da paróquia e da própria comunidade. Logo depois de vencida essa etapa, o balanço realizado pelo setor financeiro da Mitra comprovou que as oito comunidades eram capazes de garantir, em seus diferentes aspectos, a sustentabilidade da nova paróquia.



Com abertura e carinho pela história traçada junto ao povo do Aglomerado da Serra, Padre Orlando partilha algo das vantagens que vê no Novo que germina. Relata-nos que a fim de gerir os recursos da Paróquia, o conselho financeiro aprovou que os mesmos, a partir daquele momento, iriam para um caixa único, a partir do qual a Paróquia assumiria as despesas de cada comunidade, como também as prioridades e urgências estabelecidas pelas mesmas, tais como projetos, construção e reformas. Em suas palavras: 



Agora todos tem que trabalhar e pensar coletivamente para uma comunidade auxiliar as demais. Fortaleceu-se o espírito de valorização do coletivo. A desvantagem, se é que pode ser vista deste ponto, é que nasceu um modelo centralizador em detrimento de algo diferente que havia. Cada comunidade mantinha-se, de certa forma, independente. O que estava precisando era organizar cada uma das comunidades para gerir de forma correta e sustentável seus recursos, porém, criava-se um grande impasse: as compras iriam ser feitas em nome de quem?

Em todo processo há ganhos e perdas. Em toda tentativa há sempre a preocupação de acertar e dar o melhor. Depois de ter sido criada em setembro de 2012, à Paróquia Dulce dos Pobres cabe fazer uma avaliação e saber o que melhorou, o que avançou? Esse deve ser o caminho a ser percorrido mesmo?



IV – E fecundar o chão 

 Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. 

Mas se morre, produz muito fruto. (Jo 12,24)



Cuidar atentamente da terra, adubá-la, enterrar a semente com imensa fé, acreditando em seu potencial, sabendo que outros desvelos se fazem e se farão necessários, mas crendo que irá germinar... E, para a comunidade cristã que recebe essa atenção, o que repercute? Em conversa com um grupo de senhoras da Comunidade Nossa Senhora de Lourdes [Entrevista concedida ao Observatório da Evangelização no domingo, 16/11/2014]. Muitas das pessoas entrevistadas dizem, de alguma forma, que começam agora a descobrir o valor da rede de comunidades, o que equivale a dizer, o próprio valor: “antes eu não valorizava a comunidade como valorizo hoje. Percebo que crescemos.” [A partilha espontânea, dentro da capela, com entrada e saída de pessoas da roda de conversa, dificultou que se anotasse fielmente o nome de cada pessoa diante do próprio relato.] Há quem achava que as comunidades, desvinculadas das paróquias antigas, não iriam conseguir caminhar por suas próprias pernas. Também houve rejeição à proposta, no princípio: “Achei que ia ser uma perda para nós. Com a passar do tempo vi que tínhamos estrutura para isso. Que tínhamos que buscar dentro de nós a certeza que Deus nos dá a capacidade de caminhar. Eu fiquei surpresa conosco.” Digna de nota essa percepção das próprias potencialidades; revela-se, assim, um passo fundamental para a consolidação de comunidades de fé adultas e capazes de enfrentar os desafios da caminhada cristã.



A beleza e o vigor da caminhada dessa nova paróquia não estão em singulares inovações pastorais. Há processos formativos em andamento nos âmbitos da liturgia e da catequese. Percebe-se, inclusive, o desejo de mais formação, sobretudo, para o surgimento de novas lideranças. Nota-se uma nova mentalidade eclesial sendo gestada. Cresce o sentimento de que o Povo de Deus do Aglomerado tem valor para a Igreja: “Dom Walmor olhou para essas montanhas, olhou para nós”; “éramos apenas uma capela, às vezes não tínhamos padre pra celebrar... agora somos uma paróquia, temos mais autonomia. A relação com a Igreja mudou. O Aglomerado tem a sua paróquia. Os padres tem mais comprometimento com o nosso lugar.” 



Na espontaneidade da conversa que flui, leve, como o vento que corta os becos da vila, comentaram que, em dado momento do processo de criação da paróquia, as lideranças das comunidades foram convocadas para uma reunião. Esta aconteceu na Paróquia São João Evangelista, em clima de alvoroço e certo descontentamento. Falou-se, então, que o povo não queria a paróquia e tampouco aceitava o nome, designado pelo arcebispo: “Paróquia Bem-aventurada Dulce dos Pobres”! Novamente o povo, que já se experimenta socialmente excluído, entende o nome como uma forma de preconceito. Por que “dos pobres”? questionava. “Padre Áureo [Padre Aureo Nogueira de Freitas, então pároco da Paróquia Santa Efigênia dos Militares] nos desarmou na reunião. Achamos que o nome era um preconceito. Depois vimos que a coisa era grandiosa. Dom Walmor viu a força da comunidade, olhou para nós e viu que a gente era capaz.” Pouco a pouco, portanto, a consciência de pertença a uma nova paróquia foi sendo construída. “Antes, em tudo a gente dependia da São João. Pe. Áureo disse: agora cada uma vai caminhar por suas próprias pernas.  Claro que ainda tem muita gente que prefere fazer os batizados e casamentos na São João. A Igreja é mais bonita, né?” Não há mais a dependência das paróquias de origem que havia, mas reconhecem que ainda precisam amadurecer. Começam a criar vínculos como paróquia e observam, por exemplo, “se alguém quiser casar na São João precisa primeiro conversar com o padre da nossa Paróquia.”



Naturalmente, aquelas pessoas mais engajadas nas comunidades comparam o tempo anterior à criação da paróquia com o momento atual: “Antes, tinha reza, leilão, barraquinhas. Quem formou a comunidade foi o Pe. Tarcísio [Padre Tarcísio Rocha, sucedido por Padre Natanael de Moraes Campos].” As pastorais tradicionais seguem tão presentes como em outros cantos da Arquidiocese, como a adoração ao Santíssimo Sacramento às sextas-feiras, o apostolado da oração, o terço dos homens, mas agora, além de ter “círculo bíblico na igreja, na quinta-feira, cada quarta o Padre Chico acompanha o círculo bíblico numa comunidade diferente, nas casas. Padre Chico tem interesse em multiplicar isso. Quando você vai nas casas, com as famílias, é muito gratificante.” Afirmam que a maior alegria é receber o padre na própria casa.



Em relação ao vínculo social, enfatizam “o encontro como grupo de referência. Vamos iniciar um trabalho, junto ao Pe. Chico. Ele sempre nos acompanha quando vamos ver o orçamento participativo, lutar pela qualidade do posto. Água, esgoto... não é política; é vida. Temos que lutar por isso.” Percebe-se que há uma crescente consciência das implicações da fé na transformação da realidade social. Aliás, isso não é novo, pois a própria Prefeitura, referindo-se à Santana do Cafezal, aponta: “o prédio da igreja era usado como local das reuniões comunitárias, além de abrigar o posto de saúde, a creche, o curso de corte e costura e uma representação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral).” [In:http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=8173&lang=pt_BR&pg=5580&taxp=

0&idConteudo=31475&chPlc=3147] Isso diz algo sobre a práxis cristã em um lugar relativamente carente da presença da Igreja católica e, sobretudo, das políticas públicas do Estado.



V – Forjar no trigo o milagre do pão

 “No coração de cada homem, por mais violento que seja, 

há sempre uma semente de amor prestes a brotar” 

                                                                                                          (Irmã Dulce)



Depois de dois anos de caminhada, observa-se que as pequenas sementes lançadas no coração do Povo de Deus do Aglomerado se tornaram brotos. Já é possível vislumbrar os primeiros raminhos forçando a terra, na singeleza do que é frágil, pequeno, mas tem uma vida pujante em seu interior que ainda se mostrará forte e fértil, como tudo o que brota do Evangelho. As mulheres entrevistadas, força viva das comunidades, constatam que os padres criaram vínculos afetivos com a paróquia. Afirmam que o povo agora procura os sacramentos, sabe o horário de funcionamento da secretaria e busca seus serviços. Sobretudo, as pessoas se alegram porque os padres visitam os doentes... Tão simples como a resposta de Jesus dada aos discípulos de João: “os pobres são evangelizados” (Mt 11, 2-5).



A constatação de quem faz sua caminhada nessa nova realidade é de que “a nova paróquia une mais a gente. Depois de 29 anos aqui, fui pela primeira vez à Santa Terezinha.” Aquelas senhoras notam que a participação ainda é pequena e que é um desafio fazer as pessoas se sentirem parte da comunidade, mas é bonito ver que hoje “é uma comunidade ajudando a outra. Nós caminhamos sozinhos e sabemos que somos capazes.” Reiteram que são todos responsáveis, que pessoas de uma comunidade participam das festas das demais, e que é um desafio, ainda, que todas as pessoas entendam que a paróquia é a mesma. Afirmam que “é melhor agora, na rede de comunidades. Todos somos responsáveis. Onde vamos somos bem recebidos, como iguais.” No entanto, elencam mais um desafio: quase não há homens dinamizando as comunidades, entre os leigos. Parece que só as mulheres se sentem responsáveis pela comunidade. “Há espaço para as pessoas que quiserem fazer parte. A gente gosta de acolher. A comunidade é aberta.” Vão, então, tentando envolver as pessoas na liturgia, melhorar o vínculo com a catequese e com a família, mas percebem que há necessidade de mais pessoas compromissadas, porque há uma sobrecarga de quem está sempre à frente, segundo afirmam.



Portanto, além da questão identitária e do nome da paróquia, outros desafios percebidos foram: envolver outras pessoas na participação comunitária e construir comunidades autônomas que se fortaleçam mutuamente numa rede de comunidades, sem uma matriz em torno da qual possam orbitar; ao contrário, engendrar um tecido feito de muitas cores e fios, todos os que a realidade oferecer, igual e irmãmente, numa partilha de dons e vozes. Nas comunidades, quem busca responder a esses desafios são, predominantemente, as mulheres. Quase não se observa, também, a presença de jovens nas celebrações. Aliás, essa foi apresentada como sendo a grande dificuldade da nascente paróquia, tanto pelo grupo de mulheres presentes na roda de conversa quanto por Padre Wagner. Elas disseram: “Falta uma adequação dos horários à realidade dos jovens, que trabalham e estudam. Às vezes eles não vêm aqui, mas vão na São José, na Santa Efigênia.” E ainda: “A verdade é que a Igreja não chega nos jovens”. [E tal afirmação após uma caminhada de 35 anos da “opção preferencial pelos pobres e jovens”, em Puebla. Há que se considerar que, na realidade em questão, trata-se do jovem pobre. Oxalá as Diretrizes da Ação Evangelizadora da da Arquidiocese, através das quais a Igreja de Belo Horizonte assume o compromisso de viver essa opção, sejam, de fato, observadas; intento dos que estão à frente da Paróquia.  



Ao se apontar para os jovens, acaba-se por tocar no cerne do que há de mais delicado na vida daquelas pessoas: a convivência tão próxima com a violência social causada pelo tráfico de drogas. Pode-se observar ao chegar para a celebração eucarística, às 8h00 da manhã, que a boca de fumo já está em pleno funcionamento justamente à porta da Igreja de Nossa Senhora de Lourdes. Motoqueiros sobem e descem os becos para atender agilmente os clientes que vinham de outros bairros, em seus carros. Comentou-se sobre o caso de uma batida policial em que jovens traficantes se refugiaram dentro da igreja. Questionadas sobre essa realidade, nossas interlocutoras mostraram sua imensa preocupação e impotência: “Os traficantes ficam aí, na porta da Igreja. Antes a gente podia chegar e aconselhar esses meninos, mas hoje tá complicado. As mães apoiam os filhos em vez de corrigir.” Afirmam que os jovens são “grande desafio e preocupação. As mães tem obrigação de chamar os filhos para a Igreja. Há muitos jovens na droga. As mães não buscam o filho quando está na boca. Mesmo crianças e adolescentes ficam lá.” Notam que os pais já não sabem corrigir os filhos, que falta a autoridade dos pais e que a Igreja poderia ajudar os pais que estão perdidos. Percebem que “há uma imensa falta de sentido para a vida desses jovens. Eles sabem que vão morrer cedo.” Quando se cogitou, na conversa, a possibilidade de se formar um grupo de mães que se fortalecessem, um grupo irmanado pela fé para buscar forças para a educação dos filhos, houve bastante interesse. Notaram que “os jovens estão abertos à oração, mas eles têm vergonha da situação deles e nós também temos vergonha de abordá-los. Mas atendemos sempre que nos pedem para ir à casa deles.” Perceberam também que, mesmo sendo poucos os jovens cristãos, eles preferem as outras igrejas, provavelmente porque se sentem mais valorizados lá. E que “a violência aqui até diminuiu um pouco. Mas a igreja não está muito presente nos conflitos. Alguns velórios a gente não vai porque tem até medo de se envolver.” 



Há, pois, pouco mais de dois anos que a Igreja traduziu em nova configuração sua presença no Aglomerado da Serra. Seria uma busca de construir novas respostas e, principalmente, se fazer as perguntas certas em relação àquela realidade? Retomando aquele momento primeiro, recordamos que por designação de Dom Walmor e do bispo auxiliar da região episcopal, no ato de criação da nova paróquia, Padre Wagner Calegário de Sousa assumiu o serviço de pároco e pastor tão logo fora ordenado presbítero. A ele se juntaram Padre Raphael Eustáquio do Carmo, quando ainda era diácono e Padre François Marie Lewden (Pe. Chico), que já vivia no Aglomerado há algum tempo.



Com o objetivo de melhor conhecer os primeiros passos da caminhada da nascente paróquia, a equipe executiva do Observatório da Evangelização visitou e entrevistou aos três presbíteros que nela atuam. Em meio à afetiva e fraternal acolhida na casa paroquial, uma residência como outra qualquer do lugar, a equipe experimentou, em cada partilha, a dedicação amorosa deles ao Povo de Deus, o entusiasmo com os passos já dados e o horizonte esperançado nos planejamentos em respostas aos desafios pastorais. 



Em outra oportunidade, a equipe executiva recebeu o Padre Raphael na PUC Minas. Este, com solicitude e cordialidade, através de longa conversa-entrevista, tirou dúvidas e contribuiu para enriquecer nosso olhar sobre a experiência em questão. Em trecho da entrevista ele nos disse:



A gente constantemente retoma a história da caminhada, porque a gente não pode perder o foco. A gente vê que as pessoas já estão começando a enxergar o próprio rosto no rosto da paróquia. Na rua, quando passamos, as pessoas já nos gritam, nos cumprimentam. Acho que isso é mais profundo que reconhecer o padre, é se reconhecer no outro. Ao cumprimentar o padre, diz em voz alta que ele tem um vínculo, tem um pastor... isso é algo novo. Antes eles eram o quê? O povo do Aglomerado. E quem é o povo do Aglomerado? Não tem rosto, não tem nome... Agora a gente cobra, para eles saberem que sua ausência é notada. Com a autoestima sendo elevada, a pessoa também vai fazendo melhores escolhas para a vida.



O que Deus está nos apontando? Como podemos ser mais fiéis a Ele? A gente tem mania de pensar que tudo tem que ser grande demais e a gente se esquece de pensar no fermento, na semente que está germinando debaixo da terra, no sal. A gente se esquece que é no micro que o macro acontece.



Sim. É como afirma Padre Raphael: “É no micro que o macro acontece.” Só quem nisso crê é capaz de forjar no trigo o que está por vir: o milagre do pão; pão partilhado para tantos, para todos. 



Tânia Jordão

e Equipe Executiva do Observatório da Evangelização.