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Paróquia Bem Aventurada Dulce dos Pobres: Uma experiência eclesial significativa?

“O que é uma paróquia de sucesso? O número de pessoas que ali participam? Não tem essa exteriorização qualitativa. Mas há uma diferença no modo de ser Igreja. O esquema tradicional não responde mais a toda realidade. Mas a gente tem que ter coragem de romper com isso.” 

Entrevista concedida à equipe do Observatório da Evangelização pelo Padre Raphael Eustáquio do Carmo.

 

Observatório: O que brota no coração e na mente, o que é mais marcante ou qual a novidade, quando falamos de uma paróquia estruturada em rede? 

Padre Raphael: Para aquelas pessoas ali, isso é uma grande novidade. No atendimento anterior, na constituição anterior, era o sistema tradicional de paróquias. Desde Medellin, Puebla, já é incentivada esse tipo de organização de comunidades em uma rede comum, descentralizada. A nossa igreja, como caminha com passos ponderados, a gente vê que inclusive o mundo dos negócios já incorporou essa terminologia (rede) e gestão há muito tempo. Mas, então, o primeiro desafio foi e está sendo esse novo modo de ser Igreja, e a forma como eles têm aceitado e assimilado isso, o quê tem sido uma novidade pra gente também. É um esquema de Igreja que não nos deixa no comodismo. A gente deve se reinventar o tempo todo.  O que era válido no ano passado, por exemplo, agora já não é mais. Devemos aprofundar os nossos métodos, para trazer sempre a novidade do evangelho.

 

Observatório: Com relação à organização, o povo quer voltar ao esquema antigo?

Padre Raphael: Não, mas tem uma referência muito forte com as paróquias antigas. Retrocesso é, às vezes, quererem a centralização. Centralizamos a secretaria, por questão prática, acessibilidade de diferentes partes do aglomerado.

 

Observatório: Você percebe retrocessos?

Padre Raphael: Eu acho que em toda e qualquer realidade sempre tem avanços e retrocessos. A gente tem vários vetores de influência. Tanto aqueles que estão brotando dessa realidade nova, da Rede de Comunidades, como aqueles antigos, das antigas estruturas paroquiais e da realidade sociocultural. Então, é normal que a gente avance, mas também tenha retrocessos.

 

Observatório: O antigo modelo de Igreja já não responde mais...

Padre Raphael: Uma pessoa lá no Aglomerado da Serra nunca imaginaria que poderia fazer o batizado das crianças lá mesmo, na igreja onde celebra aos domingos.  Quando a gente propôs que isso acontecesse, as pessoas meio que entraram em parafuso. Como a gente vai organizar isso? Como todo processo, ele nunca se dá de uma forma automática. A autonomia das pessoas está se dando de uma maneira muito gradual, mas há uma ferramenta fundamental não só para o modelo de redes eclesiais, mas também se a nossa igreja quiser, de fato, com a sua palavra ter ainda alguma mordência na vida das pessoas: essa ferramenta são os conselhos. Ferramenta mais eficaz de onde brota a corresponsabilidade. As pessoas, com sua forma de agir, nos fazem enxergar que às vezes é preciso dar um tempo ou que é necessário avançar ainda mais. Então, se a gente não tiver essa ferramenta, que é o conselho, em cada comunidade, na rede como um todo, esse processo se fragmenta. O que cimenta esses tijolos, que são as comunidades, são os conselhos. São oito comunidades. Na maioria das comunidades os conselhos têm acontecido. A gente tem que ter paciência com o processo de maturidade deles. 

 

Observatório: O que a Paróquia Bem Aventurada Dulce dos Pobres traz de novidade? Em que isso daqui é um modo de evangelização que mereça ser divulgado? 

Padre Raphael: O que é uma paróquia de sucesso? O número de pessoas que ali participam? Não tem essa exteriorização qualitativa. Mas há uma diferença no modo de ser Igreja. Uma senhora de cabelos brancos, num batismo de três crianças, disse: eu hoje aprendi o que é ser cristão. Taí. O esquema tradicional não responde mais a toda realidade. Mas a gente tem que ter coragem de romper com isso. Não temos que repetir todos os esquemas. De discussões bobas no Conselho, passamos a discussões verdadeiramente pastorais.

 

Observatório: Nesse sentido, houve alguma preocupação de vocês três, juntamente aos Conselhos, de fazer um grande diagnóstico da realidade, da demanda social, denunciar algum mecanismo que se aproprie da comunidade?

Padre Raphael: Ali tem algumas estruturas de poder que estão viciadas (como diria Dom Helder Câmara). Eu vejo os jovens que estão comercializando a droga não como os grandes vilões, mas como escravizados por um sistema muito mais amplo, que envolve negligência do poder público, um endurecimento do coração dos que detêm o poder econômico, uma fragilização das estruturas familiares; mais uma vez recorro ao grande instrumento que são os Conselhos, como fermento na massa. Somente a partir dos Conselhos, sendo de fato fomentadores de opinião no Conselho Local de Educação, de Saúde, no Orçamento Participativo é que a gente vai criar, junto com as instâncias que já estão aí criadas, governamentais, a gente vai de fato, poder enxergar a realidade. A gente como Igreja não teria assim tantos instrumentos para lidar com essas realidades. Mas, talvez o grande instrumento seja a formação de opinião e a conscientização da dignidade daquelas pessoas com relação a essas realidades.

 

Observatório: E como se dá essa formação? 

Padre Raphael: No processo de formação a gente tem tentado resgatar algo que é próprio da Igreja. Sempre a preocupação da Igreja é menos com o conteúdo e mais com o encontro. As pessoas irão aprender o conteúdo a partir do encontro. Importa encontrar-se, profundamente, com as pessoas, muito mais que o conteúdo. A preocupação é a centralidade da pessoa e a gente ser sinal da graça de Deus ali onde estivermos. Importa é cada pessoa se assumir como cristã e se assumir como arauto do Evangelho na vida de outras com as quais vai se encontrar. Claro que para isso a pessoa precisa ter intimidade com Deus e também saber, por exemplo, quais recursos o governo disponibiliza para a vida da comunidade. Partir da realidade de cada um para ser canal da Palavra de Deus, não só bíblica, mas da Palavra de Deus que fala na vida da gente de diversos modos.

 

Observatório: Estruturas de poder, uso político das comunidades... Não é fácil ser profético.

Padre Raphael: A realidade do tráfico de drogas talvez seja a mais latente que a gente tenha lá no Aglomerado da Serra. Tráfico e venda, não consumo; porque os grandes compradores são provenientes da classe média alta, são “acima de quaisquer suspeitas”. No Aglomerado fica o estigma. Claro que há muita violência, porque aqueles que teriam que ajudar a que essas pessoas tivessem mais dignidade, fazem desse um povo escravo de seus próprios interesses. Talvez essa seja a grande forma de violência que a gente veja lá no Aglomerado da Serra.

 

Observatório: Qual é a população de católicos estimada na Paróquia de vocês?

Padre Raphael: Na área da Paróquia são cerca de 40.000 pessoas. 3% cristãos, dentre os quais também católicos.

 

Observatório: E para fermentar essa massa toda? Tocar nessa realidade acreditando que esse fermento é de boa qualidade... Pensam em algumas diretrizes concretas, mesmo que não sejam diretrizes pastorais? Como Igreja, há que se pensar uma ação.

Padre Raphael: Os trabalhos e a conscientização são muito paulatinos. No começo sempre ouvíamos: “Quem sou eu para fazer tal coisa?” Há ali uma baixa autoestima muito grande. As pessoas se subestimam. Quem sou para lutar pelos meus direitos? Talvez seja esse o trabalho do fermento: munir as pessoas das ferramentas adequadas como uma ajuda a que elas vão se descobrindo.

 

Observatório: O próprio fato de desvincular as comunidades das matrizes já alimenta a autoestima, porque as obriga a ir descobrindo passo a passo que elas são capazes de manter-se como comunidade.

Padre Raphael: É um dos avanços. Elas se conscientizarem do protagonismo que são chamadas a ter. Eu louvo e agradeço a Deus pela inspiração do sistema eclesial de Rede de Comunidades porque cada comunidade tem as suas características, tem os seus desafios... O que São Lucas tem de necessidade não é aquilo que São Miguel necessita. Eles têm de se redescobrir a cada dia, como cristãos, e se fortalecer no trato fraterno para começar também a ser luz de Cristo na vida de outras pessoas.

 

Observatório: E a acolhida, como se dá esse processo de construção? Há preocupação com a missionariedade?

Padre Raphael: Lá não temos um esquema comum de acolhida. Como cada comunidade tem sua especificidade, também cada comunidade acolhe à sua maneira. Há alguma em que uma equipe fica na porta dando as boas vindas, ajudando a que as pessoas encontrem o melhor lugar para ficar, deficientes, por exemplo. Outras já servem um chazinho no final, com um pedaço de bolo. Outra dá um papelzinho na porta, na hora da saída. Outra fala: Ô padre, tem gente que veio aqui hoje pela primeira vez; tem gente que perdeu alguém da família, o senhor poderia dar uma palavra de reconforto e a gente vai lá, durante a semana, visitar. Nós três (padres) insistimos na importância da acolhida, mas a gente nunca diz: “tem que ser assim”; porque cada uma tem sua especificidade. Sobre a questão missionária, temos agido de várias formas. Por exemplo, a novena de natal: como vamos fazer? Propomos: vamos marcar nas casas de quem não tem vindo à Igreja. Ou, nas casas dos doentes, ou dividir o grupo para atender a parte de baixo e a de cima da comunidade.

 

Observatório: A caminhada está sendo registrada?

Padre Raphael: Essa memória é registrada nas atas dos Conselhos, nos livros de tombo. A gente constantemente retoma a história da caminhada, porque a gente não pode perder o foco. A gente vê que as pessoas já estão começando a enxergar o próprio rosto no rosto da paróquia. Na rua, quando passamos, as pessoas já nos gritam, nos cumprimentam. Acho que isso é mais profundo que reconhecer o padre, é se reconhecer no outro. Ao cumprimentar o padre, diz em voz alta que ele tem um vínculo, tem um pastor. A gente já vê essa consciência formada nas crianças. Quando a gente passa e diz para uma criança: “ah, você não foi à missa, hem?” elas ficam apreensivas... Isso é algo novo. Antes eles eram o quê? O povo do Aglomerado. E quem é o povo do Aglomerado? Não tem rosto, não tem nome... Agora a gente cobra, para eles saberem que sua ausência é notada. Com a autoestima sendo elevada, a pessoa também vai fazendo melhores escolhas para a vida.

 

Observatório: E como vocês têm concretizado as duas diretrizes da Arquidiocese: a opção pelos jovens e a questão familiar?

Padre Raphael: Na nossa paróquia, toda diretriz deve ser introduzida de forma muito paulatina. Não só lá, mas em toda e qualquer realidade. A gente tem procurado um método que consiste em, antes de dizer o quê fazer, dar as razões para o porquê fazer aquilo. Justamente por isso os Conselhos são fundamentais, porque são difusores de ideias novas. Eles têm nos ajudado muito e também se ajudado a de fato construir uma realidade nova. Sobre as famílias, a mudança de paradigma tem sido sentida de uma forma muito voraz em toda a sociedade. Não sei se Pe. Wagner e Pe. Chico compartilham do que penso, mas penso que por haver uma concentração imensa de pessoas naquele espaço proporcionalmente pequeno, temos visto um processo muito acelerado do que no Brasil é um pouco mais lento. Ali a gente já tem vários esquemas de famílias: família homoafetiva, com filhos; crianças que tem como referência os avós; outras que ninguém da família é referência, mas um vizinho, um amigo, alguém que pega para criar... E como tratar isso? A gente não tem uma resposta pronta a não ser a do Evangelho, que é a do acolhimento. Em nome de quê poderíamos excluir ou negar algo para determinada família? Temos nosso horizonte paradigmático, mas temos também que pisar no chão da vida, e fazer, de cada encontro, de cada oportunidade, uma situação única para que aquelas pessoas se sintam amadas e acolhidas por Jesus Cristo, através de nós. Temos buscado o diálogo, o conhecimento da realidade das pessoas, não forçando situações, nem esquemas... As próprias pessoas têm nos confrontando em alguns aspectos: “Fulana e sicrana podem ser madrinhas da criança?” Uai, onde tá dizendo que não pode?

 

Observatório: Isso nos dá muita alegria e esperança. Ver esse olhar de vocês, jovens presbíteros. Faz-nos pensar que a formação está renovada, que volta ao Evangelho.  Papa Francisco também mostra que esse que deve ser o norte: o Evangelho.

Padre Raphael: Talvez a gente como Igreja tenha se esquecido que qualquer normativa só pode nos conduzir à fidelidade a Jesus Cristo se ela aponta para o próprio Cristo. A norma deveria ser a ponte, mas talvez as práticas pastorais distanciem a norma do Evangelho. Eu não vejo o Magistério da Igreja tão distante da vida das pessoas, mas talvez a forma de aplicar o Magistério seja. Talvez a grande palavra de ordem que eu tenha experimentado no Aglomerado é que a gente tem que ter coragem de romper com alguns esquemas.

 

Observatório: E sobre a juventude: fora da igreja, no tráfico?

Padre Raphael: Preâmbulo: não só em relação a jovens, mas também famílias, vocações, trato com os bens... têm uma dimensão da vida cristã que tem sido esquecida por todos nós cristãos, clero e leigos. Temos nos esquecido da dimensão fundamental do testemunho da nossa fé. A gente não pode dizer que é fiel a Jesus Cristo, que é fiel ao Evangelho se nós não testemunhamos e se não tornarmos o Evangelho carne da nossa carne. Se não cuidamos disso sucumbe tudo, jovens, família, vida consagrada... porque é na minha vida que o outro deve beber da fonte do Evangelho. Nesse sentido é que bato no peito e faço um mea culpa e convido também a cada cristão a fazer um mea culpa, porque, se ao lado de uma igreja há jovens que não enxergam naquela igreja uma luz para que eles possam reinterpretar a própria vida, quer dizer que nós não estamos sendo um farol na vida dessas pessoas.

 

Observatório: E então o que fazer? O trabalho que está sendo feito lá toca essa realidade?

Padre Raphael: Muitos deles têm, lá no coração, a semente do Evangelho. Talvez eu só enxergue ali um trabalho na base. Nas famílias, nas relações fraternas na comunidade, numa catequese que de fato favoreça o encontro daquelas crianças com Jesus Cristo, não tanto preocupada com o acúmulo de conteúdos, mas que favoreça uma adesão sincera a Jesus Cristo, que faça com que essas pessoas enxerguem a própria realidade a partir do olhar de Cristo.

 

Observatório: Três presbíteros trabalhando juntos, circulando pelas comunidades... Como essa experiência se dá? 

Padre Raphael: Sentimos aquela sintonia. A gente tem se engajado, não só procurando levar o melhor de nós para o serviço às pessoas, mas também a gente tem se preocupado em cuidar uns dos outros. A gente não poderia pregar para as pessoas a comunhão, a unidade, o diálogo, a fraternidade se não vivêssemos esses valores. Para mim e Pe. Wagner é um presente a presença do Pe. Chico pela experiência de vida, testemunho de vida e de fé; sobretudo essa sua sensibilidade especial ao mundo do trabalho nos tem ajudado a abrir os olhos para algumas realidades que às vezes a gente, no ímpeto de ajudar de alguma forma, a gente deixa passar despercebida. Tem sido bastante frutuoso esse trabalho. Agora a gente acolheu também alguns seminaristas e a gente vê como é sentar em volta de uma mesa e partilhar os problemas da vida, os problemas pastorais, comer juntos, falar da saúde... Nossa vida deve coroar esse nosso processo de fé. Isso é bom pra gente.

 

Observatório: No aspecto pastoral, essa pequena comunidade presbiteral fez diferença, ao trocar o olhar sobre alguma comunidade, lideranças... há algum tipo de resultado, fruto da partilha?

Padre Raphael: Na paróquia, a gente é querido aonde quer que a gente vá. Os três igualmente. A gente tem conseguido ser irmão com os irmãos. Também os dois seminaristas e os conselheiros. No aspecto pastoral é bom que a gente faça um rodízio. Juntos conseguimos enxergar melhor a realidade, entender os processos, saber como lidar com determinados problemas; como alimentar certos sinais de ressurreição que aparecem nos seio das comunidades. O olhar para ver os avanços e retrocessos é muito bom ser partilhado. Maturação. Tenho uma consciência bíblica, mas também eclesial de que nossa história está nas mãos de Deus. Nossa história não está desvinculada da História da Salvação, é uma continuidade. Em determinados momentos Deus age pra nos mostrar que caminho seguir... Quando temos coragem de olhar para nossa história, nossas comunidades, e abraçá-las de verdade como, de fato, fraternidade em Cristo, aí Deus vai agindo no nosso meio. A Igreja é Corpo de Cristo: somos membros de um mesmo corpo. A gente vai fazendo essa intercomunhão de várias formas para perpetuar o amor de Deus entre nós. O Observatório da Evangelização também é sinal de ressurreição. Vamos poder unir várias experiências para buscar ter um olhar mais acertado: O que Deus está nos apontando? Como podemos ser mais fiéis a Ele? A gente tem mania de pensar que tudo tem que ser grande demais e a gente se esquece de pensar no fermento, na semente que está germinando debaixo da terra, no sal. A gente se esquece que é no micro que o macro acontece.

 

Observatório: Como o Raphael se sente na Arquidiocese de Belo Horizonte?

Padre Raphael: Não posso separar o que fala o Raphael e o padre. Não me sinto inferiorizado em nada. A gente ficou com a melhor parte. O que muda de uma paróquia para outra é o padroeiro e o endereço. O povo de cada comunidade é Povo de Deus, indiferentemente de onde esteja. Eu acolhi com bastante alegria ir para o Aglomerado da Serra, como acolheria ir para qualquer outro lugar de Belo Horizonte. Só vejo que haja uma proeminência entre os padres, a depender do serviço que presta à Igreja.