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O poder do sistema financeiro e a insustentabilidade das desigualdades sociais

Evangelizar, por ser o anúncio-testemunho de uma boa nova, implica profunda reflexão crítica sobre a realidade em que vivemos: discernir os sinais de vida e de morte, em busca de caminhos a seguir. Assim como Jesus de Nazaré e, antes dele, os profetas de Israel, perceberam a necessidade incontornável de se fazer críticas ao sistema sociopolítico, econômico, cultural e religioso como parte integrante da missão, hoje, nesse mundo com tantas desigualdades sociais e ameaças ecológicas, não pode ser diferente.

Para se ter maior clareza dos tempos sombrios em que  vivemos, com a palavra o prof. Ladislau Dowbor:

Entrevista especial com Ladislau Dowbor

 

Por: Entrevista Ricardo Machado | Edição Patricia Fachin

 

Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp. Além disso, é consultor de diversas agências das Nações Unidas.

Esta entrevista foi concedida pessoalmente à IHU On-Line quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, lançando o seu novo livro, A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta (São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017).

Confira a entrevista:

1. Como o senhor analisa a atual conjuntura econômica brasileira?

Ladislau Dowbor — No conjunto, considero que a política, no Brasil, foi assumida por um grupo de pessoas, ou seja, de políticos e por um segmento do judiciário apoiado pela mídia, o que em outros países seria considerado uma “banda criminosa”. Trata-se de um movimento, de um lado, de rapina sobre o país e, de outro lado, de proteção de caráter mafioso, em que um encobre o outro. Considero que é um processo golpista, que pode ter se cercado de firulas legais, mas quando se tem um governo com aprovação na ordem de 3 a 5%, que está fazendo coisas que são negativas para o país, é golpe.

Eu trabalho mais a dimensão do travamento econômico, que obedece a um escalonamento interessante. A Constituição de 1988, com um movimento pendular, teve uma visão um pouco mais progressista, mas a partir daí houve um desmonte disso com a quebra da inflação. Em 1995 foi aprovada uma lei abolindo o imposto sobre lucros e dividendos, o que é absolutamente escandaloso, e, ao mesmo tempo, foi aprovada a lei que criou a Selic, que passou a ser aplicada a partir de 1º julho de 1996, em que a dívida pública remunera as instituições financeiras que compram títulos da dívida pública na ordem de 25% ao ano. Pagamos 25% ao mês sobre o dinheiro que é dos depositantes — internacionalmente esse juro é da ordem de 0,5%, é de 0% no Japão e 0,75% na Europa. Essas mudanças incentivaram as aplicações financeiras em títulos do governo, e os que lucraram com esse tipo de operação não pagam impostos por causa da lei de lucros e dividendos.

Em 1997 foi aprovada a lei que autorizava o financiamento corporativo das campanhas e isso gerou um Congresso que passou a ser conivente e solidário com esse processo. Em 1999 foi aprovada a lei que liquidava o artigo 192 da Constituição e limitava os juros a 12% mais inflação, de autoria de José Serra. Com isso, os investidores puderam expandir as taxas de juros em todas as áreas que tocam diretamente, em particular, pequenas e médias empresas, a pessoa física e jurídica. Isso foi se acumulando, e em 2002 Lula leu a Carta aos Brasileiros, na qual disse que queria ser eleito e iria respeitar os contratos, ou seja, ele estava sinalizando que não iria mexer no sistema financeiro. Mas, mesmo com poucos recursos, ele conseguiu fazer uma revolução, em termos sociais, extremamente positiva. O Banco Mundial avalia o período de 2003 a 2013 como a “Década Dourada”.

No entanto, na “Década Dourada” os juros começaram a pesar e as pessoas começaram a ficar endividadas. Os últimos dados indicam que 61 milhões de brasileiros adultos estão enforcados com as dívidas, não estão conseguindo pagá-las, quem dirá comprar coisas novas. A capacidade de compra das famílias foi travada, elas pararam de comprar, e isso gerou uma crise na área empresarial. Quando não tem para quem vender, a área empresarial para de produzir e desemprega, o que diminui ainda mais a capacidade de compra das famílias.

Em 2017 o estoque da dívida de pessoa jurídica e pessoa física ficou em torno de 3,1 trilhões de reais, isto é, 50% do PIB. Mas pagamos um juro médio de 30% — na Europa seria 3% —, já incluindo o crédito direcionado, como o da Minha Casa Minha Vida. Se considerarmos o juro livre, que é aquele dinheiro que pegamos no banco, a média de juros para pessoa física é de 68%. Nenhuma economia pode funcionar assim — 3,1 trilhões pagando 30% são 15% do PIB que são transformados em juros. Além disso, 7% do PIB está sendo extraído da Selic: se considerarmos os juros sobre a dívida de pessoa física e pessoa jurídica e somarmos a dívida sobre os títulos públicos, mais 7%, temos 22%. Esse é o fluxo financeiro integrado. Acrescente-se a isso que, em termos tributários, esse tipo de lucro é isento de pagamento de impostos e considere que grande parte desse dinheiro vai para o exterior, onde tem cerca de 520 bilhões de dólares, o equivalente a 1,7 trilhão de reais, ou seja, aproximadamente 28% do PIB. Portanto, os investidores não só não reinvestem, como queria a Constituição, como sequer pagam impostos.

 

2. Por meio de qual operação financeira se leva esse dinheiro para fora do país?

Ladislau Dowbor — São diversas operações. No Brasil há uma leniência absolutamente fenomenal sobre esse problema. Os melhores dados que temos são do Global Financial Integrity – GFI, que fez o levantamento do fluxo através de preço de transferência, que basicamente trata de sobrefaturamento e subfaturamento, ou seja, de fraude em notas fiscais. As fraudes em notas fiscais transferem para fora do país cerca de 2% do PIB, segundo a avaliação do GFI no ano de 2016. O dinheiro, hoje, é um sinal magnético; todos esses bancos que estão no país — Santander, HSBC, entre outros — estão ligados a paraísos fiscais e têm departamentos que chamam de “otimização tributária”, o que facilita esses processos de evasão. Não temos como travar um processo desses.

Quando temos esse tipo de dreno da economia, as famílias não podem comprar, as empresas não têm como investir e o Estado não tem como financiar nem políticas sociais, nem investimentos em infraestrutura. De 2012 para 2013, o governo Dilma constatou que a economia estava sendo paralisada através do sistema financeiro. Com isso o governo decidiu enfrentar o sistema financeiro: reduziu a taxa Selic, de 14% para 7,25%. Ou seja, reduziu uma imensa “mama” de quem ganhava recurso apenas aplicando na taxa Selic sem precisar produzir. E muitas empresas pararam de produzir, dizendo que rendia muito mais aplicar em títulos do governo. Nos bancos públicos em que o governo Dilma podia intervir — Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil —, foram baixadas as taxas de juros para as empresas e para as pessoas físicas. Isso fez com que muitas pessoas começassem a fugir dos bancos privados, migrando para os bancos públicos. Isso não prestou, porque sinalizou uma quebra do pacto.

 

3. Esse é um embrião do golpe? Sinaliza também uma quebra do pacto feito por Lula e por Henrique Meirelles em 2002?

Ladislau Dowbor — Exatamente. A partir de meados de 2013 não se tem mais governo; Dilma baixou esses juros, mas não tem mais governo. Com isso, o que a Dilma fez? Voltou a subir a Selic para 14%. É pornográfico.

O Congresso e o Meirelles dizem que baixaram a inflação, mas claro que a inflação baixou, porque quando se quebra o aparelho produtivo, não tem como vender. Se as empresas não têm para quem vender, elas paralisam. As taxas de juros para as empresas são surrealistas, porque enquanto na Europa e nos EUA essas taxas estão na faixa de 2% ao ano, aqui estão na faixa de 20%, 30%, 40%, segundo o tipo de produto. Então, se as empresas têm a opção de colocar o dinheiro na taxa Selic, para que elas vão “se matar para produzir” se podem fazer aplicação financeira?

No meu livro analiso como isso está se dando em nível internacional, porque por trás de tudo isso temos o fato de que, nas últimas décadas, a financeirização se tornou mundial. A partir daí começa a ficar claro por que, no mundo todo, oito famílias possuem mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. No Brasil, segundo relatório recente da Oxfam, seis famílias têm mais do que a metade mais pobre e que 5% têm mais que os 95%.

É importante citar que o desajuste é estrutural, não é momentâneo. Quando pegamos o fluxo financeiro integrado, pegamos por quem vai fazer funcionar a economia: o primeiro motor é o consumo das famílias. Se isso quebra, trava o outro motor, que são as empresas. E, como foi tirada do Estado a capacidade de redinamizar a economia com políticas anticíclicas através de investimentos e de políticas sociais, simplesmente se “amarrou” o país.

O que funcionou nos Estados Unidos em tempo de crise? O New Deal, isto é, redinamizar na base, reforçar a demanda, que, por sua vez, gera atividade empresarial, que gera impostos, e a geração de impostos cobre o que o governo gastou para redinamizar a economia. A reconstrução da Europa também se deu assim.

4. Em seu novo livro – A era do capital improdutivo – o senhor traz três elementos chaves para pensar as sociedades contemporâneas. Brevemente, o senhor poderia explicar como esses três eixos se relacionam e geram esse problema estrutural?

Ladislau Dowbor — No primeiro capítulo especifico isso, e essa parte é um desafio comum, pois não ocorre só no Brasil; é um desafio geral. Do lado ambiental temos o clima, que é um desastre planetário, porque a humanidade tem muita dificuldade de enfrentar problemas globais de longo prazo e de visão sistêmica. Há contaminação e poluição dos oceanos, rios, lagos etc. O Golfo do México, por exemplo, está morto, o mar Báltico está morto, uma parte do Mediterrâneo está morta, e por aí vai. Além disso, há a sobrepesca dos oceanos, que está liquidando com os peixes. As pesquisas do WWF de 1970 a 2010 mostram que em 40 anos nós destruímos 52% da fauna do planeta. Saíram pesquisas na Alemanha sobre a eliminação de insetos pelo uso de produtos químicos, sendo que os insetos são fundamentais para a polinização.

Outra dimensão é a desigualdade, que está atingindo níveis altos. Esse negócio de 1% da população ser mais rica que os 99% restantes é absolutamente insustentável, não só no plano ético, mas em particular no plano ético, porque essas grandes fortunas não são produtoras, mas sim extratoras do capital. De certa maneira, por mais que xingássemos o capitalista que criou uma fábrica de sapatos e explorava seus trabalhadores, pelo menos ele estava gerando emprego, produzindo sapatos e pagando seus impostos. Os investidores, ao contrário, não pagam impostos e não estão produzindo; apenas extraindo.

Na realidade, a desigualdade tem a dimensão ética, pois não podemos deixar 800 milhões de pessoas morrendo de fome, e tem a dimensão política, porque nenhuma economia consegue funcionar dessa forma. A desigualdade e a destruição do planeta significam que estamos destruindo o planeta por causa de uma minoria. Sabemos, com base em dados e estatísticas, quais são os problemas ambientais que temos, que precisamos mudar a matriz de transporte e a matriz energética, que temos que organizar a inclusão produtiva e a renda básica universal na base social e sabemos onde estão os recursos — eles estão nos paraísos fiscais. Em 2012, nos paraísos fiscais, havia entre 21 e 32 trilhões de dólares, quando o PIB mundial era de 73 trilhões, isto é, ¼ do PIB.

O imenso Acordo de Paris garantia levantar 100 bilhões de dólares ao ano para enfrentar a dinâmica ambiental, mas o que está parado nos paraísos fiscais dá duzentas vezes mais esse valor. Foram feitas reuniões em Nova Iorque, sobre a Agenda 2030, e em Paris, sobre as mudanças climáticas, e também a reunião de Adis Abeba, que é menos falada porque foi um desastre. O objetivo desta última era definir como iríamos financiar tanto as metas de Paris quanto as de Nova Iorque. Esses recursos apropriados pelo sistema financeiro, que não são produtivos, têm que ser reorientados para financiar a mudança na forma como tratamos a natureza e o planeta e a forma como tratamos nossos cidadãos. Isso é interessante não só porque é bom para o planeta e para a humanidade, mas porque em termos econômicos funciona. Quando a Coreia do Sul investiu 960 milhões para melhorar a tecnologia do transporte coletivo nas grandes cidades, não só gerou um monte de pesquisas tecnológicas, como também gerou um monte de empregos e o barateamento do transporte. Com isso temos o chamado “círculo virtual positivo”.

O básico do problema é que o sistema financeiro se tornou extremamente poderoso. A popularidade do livro do Piketty demonstrou cabalmente que, enquanto se remunera a 7% a aplicação financeira, que não produz nada, o PIB cresce a 2% ou 2,5%, ou seja, o dinheiro vai para onde rende mais. Quando Martin Wolf, economista-chefe do Financial Times — um cara de imensa visibilidade mundial para a área financeira —, disse que esse sistema perdeu sua legitimidade, temos que começar a pensar.

 

5. Como o senhor observa o cenário para as eleições do ano que vem? O que podemos esperar?

Ladislau Dowbor — Eu, francamente, acredito que a única personalidade que poderia reunir forças sociais suficientes para gerar uma transformação positiva ainda é o ex-presidente Lula.

 

6. Apesar das controvérsias?

Ladislau Dowbor — As controvérsias são criadas. Eu conheço o Lula há mais de 30 anos, do tempo em que nos reuníamos com Paulo Freire, Florestan Fernandes, Paul Singer etc. Dizer que Lula tem apartamento lá ou aqui é ridículo, inclusive em termos de montantes. Se tivessem encontrado alguma coisa, já se saberia; a dimensão jurídica já é uma armação. Com as armações que se fazem em termos políticos, em termos do judiciário, achar que não há armação contra o Lula, francamente! Tudo isso aqui virou uma zona política que gerou uma imensa insegurança e gerou algo que, ao meu ver, é uma das coisas mais perigosas e mais críticas, que é a convicção de boa parte da sociedade de que esse negócio de política não funciona, de que o cinismo político é geral. Isso pode ser catastrófico, porque abre as portas para o fascismo com muita facilidade. O resgate das dimensões democráticas é vital. Quando viajo — viajo muito para o interior e trabalho muito com desenvolvimento local —, vejo que para grande parte da população existe a memória de que em 10 anos foram feitos imensos avanços. O brasileiro, de 1991 a 2010, ganhou nove anos a mais de vida. Essa memória está dispersa em 5.580 municípios; isso não gera força política, mas existe, e essa memória tem uma grande força.

Eu sou suficientemente realista para saber que, no caos que foi criado, ninguém pode prever os resultados da próxima eleição. Se viesse uma proposta nova, mas não, estão arrancando pedaços de quem pode e votando para proteger uns aos outros, porque amanhã é a sorte do outro. Qualquer previsão é irresponsável; simplesmente não sabemos. Tem uma frase muita simpática do José Ortega y Gasset, filósofo, que diz: “No sabemos lo que pasa y es exactamente eso lo que pasa”.

 

(Entrevista concedida ao IHU On-Line em novembro de 2017)

(Os grifos são nossos)

 

Assista a conferência na íntegra

 

Fonte:

IHU