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O que nos diz, pastoralmente, os 300 anos de Aparecida?

No marco celebrativo dos 300 anos de Aparecida, o teólogo jesuíta Pe. Francisco das Chagas de Albuquerque, SJ apresentou no V Colóquio de Teologia e Pastoral, promovido pela Faculdade Jesuita de Filosofia e Teologia – FAJE, pelo Instituto São Tomás de Aquino – ISTA e pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, esta pertinente reflexão.

O Observatório da Evangelização, que participou da organização do evento, publica aqui, na íntegra, o texto apresentado pelo Pe. Chagas. Vale a pena ler e deixar-se provocar:

 

APARECIDA: SIGNIFICADOS PASTORAIS PARA A IGREJA NO BRASIL

Introdução

 

Em 2017 comemoram-se os 300 anos do encontro da Imagem da Imaculada Conceição no Rio Paraíba. Esse evento enseja a reflexão e o debate sobre sua relevância para a vida dos cristãos e a missão da Igreja no Brasil. Nos pontos que seguem tendo a ajuda de alguns estudos da religiosidade popular, e recorrendo-se a textos do magistério da Igreja, inclusive das conclusões da conferência de Aparecida, mostraremos alguns significados pastorais de Aparecida.

 

A abordagem dos significados teológicos pastorais da história da realidade de Aparecida não pode ser feita sem considerar outras manifestações e aparições marianas e suas consequências ao redor do mundo. Especialmente temos de lançar um olhar sobre o contexto latino-americano, e muito particularmente a aparição de Guadalupe. A história que nos foi narrada dá conta da miséria dos indígenas afetados pelas condições e vida em meio ao projeto colonizador.   Aqui se tem uma dupla mensagem: expressão da miséria dos índios latino-americanos e o protesto contra essa miséria. No fato Guadalupe configura-se uma reviravolta copernicana. A coletividade indígena representada por Juan Diego já não seria mais apenas receptora passiva da doutrina religiosa, mas os nativos passariam a agentes ativos na construção da nova religião. Elimina-se a pura subserviência dos súditos aos patrões e súditos, surgindo parceiros iguais numa comum busca. A aparição da “morenita” a Diego comporta uma carta ética importante. “É a exigência de se fazer cumprir o respeito absoluto ao outro, de acolher de fato e de direito sua transcendência, no respeito à vida” (CALIMAN, 1989, p. 135).     A completa mudança nas relações de poder se manifesta pelo uso da língua dos nativos pela Virgem. A proteção que a proximidade da Mãe de Jesus expressa que está do lado do mais fraco, tornando-se aliada do índio coletivamente e da cultura oprimida.   Diferentemente da relação do colonizador como o índio, A Virgem assume e ama este como filho, por isso o reveste de coragem para combater em favor da próprio frente às autoridades eclesiásticas. Atender seu pedido significava afirmar a identidade de um povo. “A aparição da Virgem de Guadalupe e a crescente devoção que dela advém têm o importante papel de devolver a um povo explorado uma identidade religiosa que vai ajudar na construção de uma nova identidade nacional” (ibid., 136).

 

Com as devidas mudanças, mutatis mutandis, se pode considerar Aparecida no contexto brasileiro no período colonial, sob o regime de padroado, e época de escravização dos negros. Uma vez a Imaculada Conceição foi achada como negra no fundo do rio Paraíba do Sul, de modo análogo à aparição de Guadalupe, significa que Maria desaprova o regime de escravização. “Desde então, a Virgem Negra, a Aparecida para os pobres, faz parte do patrimônio inalienável dos negros discriminados e marginalizados do Brasil” (ibid., 136). Aos índios e negros, grupos étnicos oprimidos naquele momento da história e ainda hoje, juntam muitos outros grupos de marginalizados que agora se manifestam com mais força. A conferência de Puebla mostrou um quadro formado por “feições concretíssimas” de empobrecidos: crianças, jovens, indígenas, camponeses, operários, subempregados e desempregados, marginalizados e amontoados nas ruas, anciãos (Pb 31-39). E Aparecida lembra a situação de muitas mulheres hoje, dizendo: “é urgente escutar o clamor, muitas vezes silenciado, de mulheres que são submetidas a muitas formas de exclusão e de violência em todas as suas formas e em todas as etapas de suas vidas. Entre elas, as mulheres pobres, indígenas e afro-americanas têm sofrido dupla marginalização” (DAp 454).

 

Em 1931, o Cardeal Leme realizou a consagração da nação brasileira à Virgem Negra, que foi declarada “Rainha do Brasil”. Nesse ato, realizado no Rio de Janeiro estavam presente grande multidão e representantes do Governo Federal. O regime apercebeu-se do pode ascendente social da Igreja Católica. No momento seguinte, levou muito a sério essa força da instituição eclesiástica. Neste sentido, o historiador José Murillo de Carvalho, estudioso do imaginário republicano, escreveu: “Por mais problema que também seja a capacidade de Aparecida de representar a nação, ela sem dúvida, supera em muito a de qualquer outra figura feminina, ou mesmo de quase todos os símbolos cívicos” (CARVALHO, 1990, p. 94).

O história diz ainda: Ao seu lado (de Tiradentes, o herói-símbolo da nação), talvez seja ainda a imagem da Aparecida a que consiga dar um sentido de comunhão nacional a vastos setores da população (…) Tiradentes esquartejado nos braços da Aparecida: eis o que seria a perfeita pietà cívico religiosa brasileira. A nação exibindo, aos pedaços, o corpo de seu povo, que a República ainda não foi capaz de reconstruir” (ibid., p. 141-142).

Internamente ao âmbito religioso popular há limites na equação Aparecida=Brasil. Em primeiro lugar, a devoção popular a Aparecida é distinta daquela de Guadalupe no México, pois aqui a ligação entre a nação em seu todo e a Santa não forte quanto naquele país. Em segundo lugar, em nosso país existem outros santuários que têm bastante afluência de devotos: Bom Jesus da Lapa, Divino Pai Eterno, Círio de Nazaré, Francisco das Chagas de Canindé e Divino Pai Eterno em Goiás (BOFF, 1995, p. 30)

Ante a figura cívico-eligiosa de Aparecida há ambiguidades: do ponto de vista sociopolítico revelam-se contradições, mas oculta-se a sua estrutura social e, dessa maneira, encontre também as possíveis soluções eficazes” (BOFF, 1995, p. 34).

O magistério da Igreja deu especial atenção à piedade popular mariana sobretudo através da Exortação apostólica do Papa Paulo VI Marialis cultus sobre a reta ordenação e desenvolvimento do culto à Bem-aventurada Virgem Maria. O número 37 destaca que se pode descobrir em Maria um modelo inspirador na busca de realização de anseios do ser humano de hoje; o mesmo se pode afirmar em relação aos cristãos comprometidos na tarefa evangelizadora da Igreja. O documento chama a atenção para a importância da inspiração que Maria oferece às mulheres, o que vale também para todos os que sintonizam com a relevância da piedade popular mariana. Afirma que “Maria de Nazaré, apesar de absolutamente abandonada à vontade do Senhor, longe de ser uma mulher passivamente submissa ou de uma religiosidade alienante, foi, sim, uma mulher que não duvidou em afirmar que Deus é vingador dos humildes e dos oprimidos e derruba dos tronos os poderosos do mundo (cf. Lc 1,51-53)”. Lembra ainda que ela “é ‘a primeira entre os humildes e os pobres do Senhor’ (LG 55)’’ (MC 37). Maria é esta “mulher forte, que conheceu de perto a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio (cf. Mt 2,13-23)” (MC 37). Desses dados bíblicos fundamentais para a mariologia decorrem vários significados pastorais para a missão da Igreja ponto em evidência a figura feminina associada a Aparecida.

 

A propósito da “piedade popular” a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi tem uma orientação: “Antes de mais importa ser sensível em relação a saber aperceber-se das suas dimensões interiores e dos seus inegáveis valores, estar-se disposto a ajudá-la a superar os seus perigos de desvio”. Reconhece sua importância na evangelização: “Bem orientada, esta religiosidade popular, pode vir a ser cada vez mais, para as nossas massas populares, um verdadeiro encontro com Deus em Jesus Cristo” (EN 48).

 

Em primeiro lugar destaca-se a força do feminino reconhecida nas mulheres que integram as comunidades de fé, que provocam a Igreja a acolher mais decisivamente a mulher no desenvolvimento de sua ministerialidade. Os pastores e pastoralistas podem exercitar a autocrítica considerando como superar o patriarcalismo e androcentrismo (eclesiástico), que veiculam uma imagem de um Deus julgador, aterrorizador e machista. O próprio documento de Aparecida registrou como proposta de ação pastoral iniciativas que levem ao desenvolvimento do “gênio feminino” (DAp 458). Uma valorização ministerial na ação pastoral para ser coerente terá que ser participada por mulheres em sentido legítimo, não como meras substitutas ou por falta de varões para assumir os ministérios. Como leigas revestidas da dignidade bastismal “derivam o dever e o direito do apostolado de sua união com Cristo-Cabeça” (AA 3). Participam do “múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo” (AA 2). Pela mesma graça batismal são inseridas “no Corpo Místico de Cristo”, pela confirmação são fortalecidas na força do Espírito Santo “recebem do próprio Senhor a delegação ao apostolado” (AA 3).

Outro significado pastoral ancora-se no significado bíblico do Magnificat. Este cântico assinala um traço marcante da figura de Maria que é a profecia. Do fato da manifestação de Aparecida, Maria negra e encontrada por pescadores a serviço dos brancos, sobressai fortemente um sentido de profecia. Por tudo lado, o que representa a sintonia do achado da imagem por pescadores e os sinais que se seguiram, N. S. Aparecida fala desta Maria, como discípula, que é profetisa do Reino de Deus. Por isso, a ação eclesial que pretenda levar em conta a originalidade histórica e concreta de Aparecida não pode esquecer, sobretudo hoje em nosso País, seu significado profético de comprometimento no enfrentamento de todo tipo de escravização.

 

Neste mesmo sentido, mas sem saudosismo ou descontextualização despropositada, a pastoral estará sempre voltada para o cotidiano das pessoas concretas na medida em que conseguir organizar-se no espírito das comunidades de base; em pequenos núcleos onde se vive a proximidade das relações humanas, fraternas e solidárias e comprometidas como a justiça na sociedade. Nas CEBs a presença de Maria vai além de sua maternidade celeste, da santidade e misericórdia. Ela é a irmã daqui debaixo, da terra, companheira de caminhada, mãe dos vitimados deste mundo. A Conceição Imaculada de Maria, chamado de “privilégio mariano”, fortalece a utopia que anima o projeto de salvação integral e sustento à esperança do povo em seu Deus. Isso nos leva animar o espírito de esperança consciente e solidária na organização dos projetos pastorais.

 

Há várias práticas de piedade motivadas pela Aparecida que, como toda prática religiosa popular, tem articulação com a fé, mas tem também riscos de afastamento do evangelho. Elas são fomentadas pela organização institucional ou partem de iniciativas individuais ou de grupo em formas diversificadas, que devem contar o acompanhamento teológico e pastoral da Igreja. São várias as maneiras de expressar a confiança na intercessão da Aparecida.

A presença de grupos organizados, famílias e visitantes individuais em Aparecida envolve vários aspectos que implicam de maneira expressiva o corpo, o movimento físico corporal. Os próprios atos piedosos e devocionais (acendimento de velas, o passar ante a imagem no templo, tocar a imagem da santa) manifestam a importância da ação corporal. “A centralidade da cura do corpo demanda uma ressignificação teológica da ‘dialética entre o sofrimento corporal e restauração do corpo”. Tal centralidade terapêutica física vai além de “uma mera troca transacional de penitência humana por favor divino” (STEIL, 1998, p. 102) Por todos os elementos que hoje compõem as romarias ou peregrinações e/ou turismo religioso expressos através dos milhões de pessoas católicas ou não, praticantes de alguma religião ou não, que visitam Aparecida do Norte, essa experiência nos diz que se deve estar atento à importância da corporalidade bem como do sentimento nas iniciativas pastorais.

 

Outro elemento que pede discernimento teológico e pastoral na piedade mariana de Aparecida são as novas formas de crer. Uma delas, bastante presente no Brasil e que é tão criticada, também presente no contexto de Aparecida, é o emocional. Um olhar externo ao eclesial e teológico sugere que não há uma ruptura com a crença tradicional, mas se trata de uma “reinvenção do tradicional no moderno”; seria uma reinterpretação da tradição num “esforço de traduzi-la para a esfera no indivíduo” (STEIL, p. 97). Nesse sentido identifica-se a relevância da materialidade do símbolo e imagens; os fiéis vivenciam de forma sensível e pessoal tais realidades simbólicas e imagísticas. Ari Pedro Oro afirma que a religião atual se realiza através de “manifestações sensíveis e do engajamento do corpo e dos sentidos” (apud STEIL, p. 98). Por sua vez, Françoise Champion e Danièle Hervieu-Léger sustentam: “a religião emocional passa a ser um dos símbolos da modernidade religiosa” (apudSTEIL, p. 98). Esse dado se constata cotidianamente na piedade mariana na invocação de Nossa Senhora Aparecida. Já em Medellín afirmavam o episcopado latino-americano, quando tratou da religiosidade: “o povo precisa manifestar sua fé de uma forma simples, emocional e coletiva” (D. Medellín, p. 69). Daí a importância do elemento emocional da vida dos cristãos que praticam a piedade marial.


Conclusão

Aparecida nos chama a atenção para nossa atitude de abertura verdadeira à piedade popular mariana, frente ao predomínio racionalista de nossas propostas de evangelização, que muitas vezes é de controle das práticas populares através de estratégias ditadas pelo racionalismo. A vitalidade da piedade popular, sem esquecer que ela precisa estar sempre iluminada pela luz bíblica, carrega em si um potencial evangelizar significativo. Por isso, tanto os pastores como os teólogos “profissionais” podem se empenhar para a ação evangelizadora valorize esta piedade mariana. A Aparecida constitui uma referência mariana que lembra à Igreja que sua missão, fiel ao evangelho, implica compromisso e proximidade com os que são vítimas de modernas escravizações. E desta maneira a ação eclesial contribua para que se realiza, efetivamente, a palavra do Filhos que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

 

O Ano Mariano, a encerrar-se na solenidade da Padroeira do Brasil em 12 de outubro de 2017, marca um chamado às comunidades cristãs a dar significado atual ao o simbolismo que Aparecida sugere, sempre à luz da Palavra revelada.

 

Referências

BOFF, Clodovis. Maria da cultura brasileira: Aparecida, Iemanjá e Nossa Senhora da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1995.

CALIMAN, Cleto. Teologia e devoção mariana no Brasil. São Paulo: Paulinas, 1989.

CARVALHO, J. M. A formação das almas: o imaginário da Republica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Puebla: texto conclusivo da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. São Paulo: Loyola, 1980.

______. Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007.

ORO, A. Pedro. Modernas formas de crer. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, n. 225, p. 39-56, mar. 1997.

PAULO VI, Papa. Exortação apostólica Marialis cultus sobre a reta ordenação e desenvolvimento do culto à Bem-aventurada Virgem Maria. Petrópolis: Vozes, 1974.

______. Exortação apostólica Evangelii nuntiandi ao episcopado, ao clero e aos fiéis da Igreja sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1977.

STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo popular tradicional e ação pastoral: desafios e perspectivas no contexto da cultura contemporânea. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 28, n. 119, p. 87-103, mar. 1998.

 

 

Sobre o autor:

Francisco das Chagas de Albuquerque é mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE (1996) e é doutor em Teologia pela Pontificia Universidade Gregoriana – PUG Roma (2009). Atualmente é professor de Teologia Pastoral da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Pesquisador em Teologia Pastoral e Prática Eclesial na América Latina. Membro do Grupo de Santiago (de Teologia Prática). Integrante do Grupo de Trabalho Teologias da Libertação nos congressos da ANPTECRE e SOTER. Editor do periódico Perspectiva Teológica do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordenador do curso de Teologia (graduação) desta mesma Faculdade.